quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Discurso de Thomas Mann - 30 outubro 1943




Thomas Mann

Ouvintes Alemães!
Discursos contra Hitler
[1940-1945]




30 de outubro de 1943


Ouvintes alemães!

A bestialidade dos nazistas, seu vandalismo, sua estúpida e perversa crueldade, os incontáveis crimes em toda parte, dos quais vocês na Alemanha talvez só tenham uma pálida ideia – nada disso impede ninguém no mundo de sentir terrivelmente o horror e a miséria que os ataques ingleses e americanos às cidades industriais e aos portos alemães também causaram a milhares de inocentes. Os números – os números oficiais alemães – são importantes. De acordo com eles, 1,2 milhão de civis foram mortos nesses ataques, cerca de 7 milhões perderam suas casas e seus lares e foram condenados à situação de desabrigados. Não creiam que falte compaixão no mundo civilizado por toda essa infelicidade. Mas a maneira como a imprensa nazista trata essa infelicidade, como se aproveita dela para eximir de culpa o fascismo alemão e atribuir a seus adversários as maldições que se devem a esse fascismo e que ele sabe muito bem que se apoiam nele – a maldição da barbárie, a maldição da violação da humanidade -, agindo como se a Alemanha nazista nunca tivesse feito nada, como se ela fosse uma vítima atacada por um ódio destrutivo e criminoso! Tudo isso é tão estúpido e deplorável que o coração mais civilizado poderia deixar de sentir compaixão.

O porta-voz da Gestapo, um jornal chamado Das Schwarze Korps [Corporação Negra], sempre se distinguiu pelo atrevimento e pelo humor velhaco. Ele tem determinados colaboradores que de alguma forma aprenderam um pouco a escrever, que sabem imitar uns gestos morais, e os espetáculos de indignação moral e de humanitarismo ofendido que esses rufiões literários da violência agora promovem estão entre o que de mais descarado, mais absurdo e mais asqueroso o nacional-socialismo jamais ofereceu a seu próprio povo e ao mundo. Quem lê esses artigos talentosos sem recorrer à memória histórica ou sem saber de tudo o que a Alemanha nazista fez aos outros povos desde que começou sua guerra de rapina; quem nada soubesse da imperdoável embriaguez em que país se regalou durante anos, da arrogância de seus crimes triunfantes; quem não se lembrasse de Varsóvia, Roterdam, Londres e Coventry e das descrições triunfalistas de crueldade saciada que a imprensa alemã publicou sobre esses fatos – esse, ao ler esses comentários, temeria pelo futuro das potências anglo-saxãs, as quais, evidentemente, nada mais resta senão sufocar-se moralmente em seus crimes infames. De fato, os autores desses artigos se perguntam com séria preocupação pelo destino dessas raças. O que deve acontecer com elas? Tais crimes acumulados contra a humanidade têm de ser vingados, têm de ser pagos e o preço tem de ser terrível ...

É possível acreditar? Os escritores a serviço da Gestapo esbravejam pelas violações à humanidade – uma humanidade da qual o sistema a que eles servem zombou durante 11 anos, que declarou eliminada, que pisoteou. O que pensam esses homens? Que a guerra total que eles exaltavam, que eles consideravam a condição normal da humanidade, era um privilégio alemão e de mais ninguém, que era uma questão vital utilizar seus recursos? Eles contaram com a civilização dos outros, ou seja, com a suposta fraqueza e o abatimento das democracias, eles imaginaram que viveriam à custa delas e que se tornariam os mestres e os senhores de escravos do mundo. Eles imaginavam que o mundo seria de quem estivesse pronto e capaz para a guerra, e que eles eram os únicos prontos e capazes. Por um momento, parecia que eles tinham especulado corretamente. Há algo mais desprezível do que a gritaria com que eles responderam à decisão dos povos livres de pôr um fim à violência sem medidas com uma violência também desmedida?

Vingança e pagamento? Aí estão eles. O povo alemão está sofrendo a vingança por sua loucura e embriaguez; ele tem de pagar porque acreditou ter o direito à violência, crença que lhe foi inculcada por professores infames, e infelizmente o pagamento está só começando. É preciso dizer a vocês, alemães, que o que vocês sofrem hoje não se origina da brutalidade e da crueldade dos estrangeiros, mas que tudo vem do nacional-socialismo? Ele trazia tudo isso dentro de si desde o começo; dele nunca poderia sair outra coisa. Isso deveria ter sido visto em 1932 e 1933. Por não ter visto isso quando ainda havia tempo, a Alemanha carrega a mais pesada das culpas. Todavia ela não é culpada sozinha. O fascismo recebeu ajuda externa – não apenas por amor à paz, mas pelas piores razões. Mas sempre foi claro que um dia o mundo se fortaleceria e teria de se levantar para eliminar essa peste. Ele também sofre o suficiente por sua cumplicidade. Mas sua vitória é certa e ele vai vencer não apenas por sua liberdade, mas pela liberdade em si, que é também a liberdade da Alemanha.” pp. 153-156


Fonte: MANN, Thomas. Ouvintes alemães!: discursos contra Hitler (1940-1945). (Deutsche Hörer!) Trad. Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.


a Guerra total : guerra mais curta:
o discurso de Goebbels em 1943


bombardeio aliado sobre as cidades alemãs





Vingança e retribuição:
para os nazistas significava o desenvolvimento e lançamento
das bombas-foguetes (os primeiros mísseis) V1 e V2
chamadas armas de vingança [Vergeltungswaffe]


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