Thomas
Mann
Ouvintes
Alemães!
Discursos
contra Hitler
[1940-1945]
30
de outubro de 1943
“Ouvintes
alemães!
A
bestialidade dos nazistas, seu vandalismo, sua estúpida e perversa
crueldade, os incontáveis crimes em toda parte, dos quais vocês na
Alemanha talvez só tenham uma pálida ideia – nada disso impede
ninguém no mundo de sentir terrivelmente o horror e a miséria que
os ataques ingleses e americanos às cidades industriais e aos portos
alemães também causaram a milhares de inocentes. Os números – os
números oficiais alemães – são importantes. De acordo com eles,
1,2 milhão de civis foram mortos nesses ataques, cerca de 7 milhões
perderam suas casas e seus lares e foram condenados à situação de
desabrigados. Não creiam que falte compaixão no mundo civilizado
por toda essa infelicidade. Mas a maneira como a imprensa nazista
trata essa infelicidade, como se aproveita dela para eximir de culpa
o fascismo alemão e atribuir a seus adversários as maldições que
se devem a esse fascismo e que ele sabe muito bem que se apoiam nele
– a maldição da barbárie, a maldição da violação da
humanidade -, agindo como se a Alemanha nazista nunca tivesse feito
nada, como se ela fosse uma vítima atacada por um ódio destrutivo e
criminoso! Tudo isso é tão estúpido e deplorável que o coração
mais civilizado poderia deixar de sentir compaixão.
O
porta-voz da Gestapo, um jornal chamado Das Schwarze Korps
[Corporação Negra], sempre se distinguiu pelo atrevimento e pelo
humor velhaco. Ele tem determinados colaboradores que de alguma forma
aprenderam um pouco a escrever, que sabem imitar uns gestos morais, e
os espetáculos de indignação moral e de humanitarismo ofendido que
esses rufiões literários da violência agora promovem estão entre
o que de mais descarado, mais absurdo e mais asqueroso o
nacional-socialismo jamais ofereceu a seu próprio povo e ao mundo.
Quem lê esses artigos talentosos sem recorrer à memória histórica
ou sem saber de tudo o que a Alemanha nazista fez aos outros povos
desde que começou sua guerra de rapina; quem nada soubesse da
imperdoável embriaguez em que país se regalou durante anos, da
arrogância de seus crimes triunfantes; quem não se lembrasse de
Varsóvia, Roterdam, Londres e Coventry e das descrições
triunfalistas de crueldade saciada que a imprensa alemã publicou
sobre esses fatos – esse, ao ler esses comentários, temeria pelo
futuro das potências anglo-saxãs, as quais, evidentemente, nada
mais resta senão sufocar-se moralmente em seus crimes infames. De
fato, os autores desses artigos se perguntam com séria preocupação
pelo destino dessas raças. O que deve acontecer com elas? Tais
crimes acumulados contra a humanidade têm de ser vingados, têm de
ser pagos e o preço tem de ser terrível ...
É
possível acreditar? Os escritores a serviço da Gestapo esbravejam
pelas violações à humanidade – uma humanidade da qual o sistema
a que eles servem zombou durante 11 anos, que declarou eliminada, que
pisoteou. O que pensam esses homens? Que a guerra total que eles
exaltavam, que eles consideravam a condição normal da humanidade,
era um privilégio alemão e de mais ninguém, que era uma questão
vital utilizar seus recursos? Eles contaram com a civilização dos
outros, ou seja, com a suposta fraqueza e o abatimento das
democracias, eles imaginaram que viveriam à custa delas e que se
tornariam os mestres e os senhores de escravos do mundo. Eles
imaginavam que o mundo seria de quem estivesse pronto e capaz para a
guerra, e que eles eram os únicos prontos e capazes. Por um momento,
parecia que eles tinham especulado corretamente. Há algo mais
desprezível do que a gritaria com que eles responderam à decisão
dos povos livres de pôr um fim à violência sem medidas com uma
violência também desmedida?
Vingança
e pagamento? Aí estão eles. O povo alemão está sofrendo a
vingança por sua loucura e embriaguez; ele tem de pagar porque
acreditou ter o direito à violência, crença que lhe foi inculcada
por professores infames, e infelizmente o pagamento está só
começando. É preciso dizer a vocês, alemães, que o que vocês
sofrem hoje não se origina da brutalidade e da crueldade dos
estrangeiros, mas que tudo vem do nacional-socialismo? Ele trazia
tudo isso dentro de si desde o começo; dele nunca poderia sair outra
coisa. Isso deveria ter sido visto em 1932 e 1933. Por não ter visto
isso quando ainda havia tempo, a Alemanha carrega a mais pesada das
culpas. Todavia ela não é culpada sozinha. O fascismo recebeu ajuda
externa – não apenas por amor à paz, mas pelas piores razões.
Mas sempre foi claro que um dia o mundo se fortaleceria e teria de se
levantar para eliminar essa peste. Ele também sofre o suficiente por
sua cumplicidade. Mas sua vitória é certa e ele vai vencer não
apenas por sua liberdade, mas pela liberdade em si, que é também a
liberdade da Alemanha.” pp. 153-156
Fonte:
MANN, Thomas. Ouvintes
alemães!: discursos contra Hitler (1940-1945).
(Deutsche
Hörer!)
Trad. Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2009.
a
Guerra total : guerra mais curta:
o discurso de Goebbels em 1943
bombardeio aliado sobre as
cidades alemãs
Vingança e retribuição:
para os nazistas significava o
desenvolvimento e lançamento
das
bombas-foguetes (os primeiros mísseis) V1
e
V2
chamadas
armas de vingança [Vergeltungswaffe]
…
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