terça-feira, 5 de novembro de 2013

peça [trecho] O Vigário - de Rolf Hochhuth




trecho da peça teatral O Vigário [O Representante]
[ Der Stellvertreter, 1963; The Deputy, 1964; El Vicario]
de Rolf Hochhuth [1931-]

Ato I – A Missão / Ato II – Os Sinos de São Pedro
Ato III – A Visita

Ato IV – Il Gran Rifiuto

(a ação se passa em 1943. quando há referência ao Chefe, entenda-se o Papa Pio XII, Eugênio Pacelli, 1876-1958. LdeM)

No Palácio Pontifício. Uma pequena Sala do Trono, quase vazia, frequentemente usada como salão para audiências mais íntimas e conversas sobre negócios. Está atapetada de vermelho – cor das vestes dos Cardeais que, como se sabe, simboliza a disposição de defender a fé a ponto de 'derramar o próprio sangue'. O Papa veste de branco, evidentemente. Sua batina é tão alva como a pomba com o ramo de oliveira do seu brasão de armas, bordado com a tiara e as duas chaves cruzadas na colgadura suspensa atrás do trono dourado.

Esta colgadura eleva-se até o baldaquino que, por sua vez, se eleva até ao teto – tão alto que não é visível aqui. De ambos os lados do trono, pouco elevado, há uma porta estreita e alta, também encobertas, as duas, por cortinas de ouro e púrpura. Encostado à parede da esquerda está um consolo de estilo barroco, com um relógio astronômico e apetrechos para escrever. Em cima, um grande crucifixo de latão forjado. Alguns escabelos dourados junto às paredes. Não há guardas.

O Cardeal está conversando com o velho Fontana [Conselheiro da Santa Sé]. O Conde, com uma pasta debaixo do braço, está de casaca, com a Ordem de Cristo. Sua Eminência, embora esteja bem no seu ambiente, mostra-se mais impessoal que em suas visitas à casa dos Fontana ou ao convento, mais parcimonioso e comedido em palavras e gestos.

CARDEAL (lamentando-se): … seja como for, não é verdade? … foi só em setembro que Herr Hitler...
FONTANA: Ah, sim, foi há pouco...
CARDEAL: Sim! Muito confidencialmente, fez saber ao Chefe que considera os bombardeiros como qualquer outra arma, não é mesmo? Que o Governo Alemão foi o primeiro a empregar essa arma e espera responder já, como vigor, ao atual contra-ataque dos Aliados. Vamos ver, não é mesmo?
FONTANA: Naturalmente, o orgulho impede Hitler de mandar o Papa como emissário à Casa Branca.
CARDEAL (não sem malícia): Mas o Chefe está muito ofendido, como sempre, quando rejeitam os seus préstimos como intermediário. Gosta tanto de escrever cartas a Mr. Roosevelt, que não dizem nada, não é mesmo?
FONTANA (vivamente): É a Hitler que ele deveria escrever, Eminência! Esse revoltado, esse patife até com os judeus de Roma se permite...
CARDEAL: O senhor pensa que Herr Hitler sabe como a sua corja se comporta aqui? Seja como for, também viemos hoje para falar nisso. Tenho rezado pelos judeus...
FONTANA (frio): Constitui uma reabilitação que o Papa finalmente protestasse, Eminência. Ouvi esse rumor hoje de manhã cedo, por intermédio do homem de confiança [ Kurt Gerstein, Obersturmführer SS] que meu filho [Riccardo Fontana] tem nas SS .
CARDEAL (muito surpreendido e até assustado): Protestar? De modo nenhum, o Chefe não protestou, Conde! Aí vem ele. Não, disso eu não sei nada.
FONTANA (surpreso): Mas sim! Hoje de manhãzinha, ele …

[…]

CARDEAL (sinceramente contrariado): Sim, não é mesmo? … Agora, depois da queda de Mussolini, que apesar de tudo sempre enfrentou o comunismo e era uma garantia da ordem social, produziu-se um vácuo que me enche de grande pavor, não é mesmo? Graças a Deus que os alemães ainda estão no país e não permitirão greves nem madraçaria. Mas... que vai acontecer quando as suas tropas se retirarem, hem... não é mesmo?
PAPA: então teremos os americanos aqui, Eminência. À tarde receberemos o enviado do Presidente em audiência. Infelizmente, Mr. Taylor vem sempre e sempre com o pedido de Mr. Roosevelt para que condenemos as infâmias praticadas por Hitler. Não foram os alemães que bombardearam San Lorenzo. Os alemães retiraram todos os livros e pergaminhos de Monte Cassino, pondo-os a salvo no Castelo Sant'Angelo (em tom aflito) e depois vieram os bombardeiros de Mr. Roosevelt e converteram essa cidadela de paz em cinza e pó. Não obstante, que falta de tato a dos alemães, levando também os judeus de Roma. (Sumamente indignado): Tendes ouvido falar disso, Conde? … Eminência? Que coisa mais malcriada!
FONTANA: Roma está abalada,Santíssimo Padre.
CARDEAL: sim, não é mesmo? .. um atrevimento infame!
FONTANA: Seja-me permitido, também em nome dos israelitas que têm procurado refúgio em minha casa, expressar os meus mais profundos agradecimentos a Vossa Santidade.
PAPA (todo bondade, espontâneo, cordial): Mas, caro Fontana, não é preciso dizer que Nós faremos, como sempre, tudo aquilo que Deus nos permitir fazer para amparar os infelizes.
FONTANA: Constitui uma verdadeira redenção o ter Vossa Santidade feito agora tão decidida ameaça como uma declaração pública. Ser-me-á permitido, com toda a humildade, perguntar se já houve alguma reação do Comandante alemão da cidade?

O Papa olha com desconfiança e sem compreender para o Cardeal, e depois para Fontana.

CARDEAL: O Comandante da cidade? Reação a quê?
PAPA (desconfiado): Reação? A quê, Conde?
FONTANA (algo inseguro, suspeitando o que está por vir): Bem, ouvi meu filho dizer que o Bispo Hudal, esta manhã, ameaçou o Comandante da cidade de que Vossa Santidade faria um protesto pela primeira vez desde que a guerra começou.
PAPA (com aspereza): O bispo ameaçou? Em Nosso Nome! Eminência, haveis dado poderes a Hudal, em nome da Santa Sé ou em Nosso Nome...
CARDEAL: Tomo a Deus por testemunha, Santíssimo Padre! Eu só ouvi falar do protesto aqui, dos lábios do Conde... Não pode ser, não acredito, não é mesmo...
FONTANA (excitado): Não sei quais os termos exatos! O Bispo talvez não tenha protestado realmente em nome de Sua Santidade, e sim apenas anunciado que era de esperar uma declaração pública do Santo Padre. Meu filho [Riccardo Fontana ] diz...
PAPA (muito descontente): Vosso filho, Conde Fontana... onde está vosso filho? Não devia estar em Lisboa?
CARDEAL (assustado, pressuroso): Esta lá embaixo, na Secretaria de Estado, Beatíssimo Padre, à minha espera.
PAPA (sumamente indignado): Mandai-o subir! Terá de explicar-nos com que autoridade se permite, como membro de Nosso Serviço Exterior, intrometer-se constantemente nesses assuntos. Os judeus e os alemães são matéria afeta aos dois Padres que para tanto nomeamos expressamente.

O Cardeal dirigiu-se logo a porta e murmurou uma ordem ao Guarda Suíço. Em face da cólera do papa, o dever de obediência leva-o também a mostrar má cara ao velho Fontana.

FONTANA: Perdão, Santíssimo padre, para meu filho. Seu zelo é filho do desespero. Em Berlim ele foi testemunha de como os nazistas arrojavam criancinhas judias em caminhões...
PAPA (um gesto de aborrecimento, e depois com voz apaixonada, impulsivo): Testemunha! … Conde, um diplomata tem de ver muita coisa e … calar. Vosso filho não tem noção de disciplina. O Núncio de Bratislava já sabia, em julho do ano passado, que tinham eliminado os judeus eslovacos do distrito de Lublin. Deixou ele Bratislava por causa disso? Não, continuou a cumprir o seu dever, e vede o resultado: nenhum outro judeu está sendo levado para a Polônia. Quem quiser ajudar, não deve provocar Hitler: tem de atuar secretamente, como os nossos dois Padres, com discrição, astuto como a serpente. Assim é que se deve lidar com os S S. Ocultamos centenas de judeus em Roma. Milhares receberam salvo-condutos! Hitler já não é tão perigoso. Diz-se em Portugal e na Suécia que ele está negociando a paz com Stalin. São rumores que nos alegram o coração, pois, embora saibamos que nada têm de certo – assim o esperamos, ao menos – contribuirão um pouco para dispor mais a Casa Branca e Londres a um compromisso: é preciso negociar, não se deve apostar a Europa inteira num 'tudo ou nada', e fazer de Stalin o herdeiro de Hitler. Deixamos que as autoridades pastorais de cada localidade decidam por si mesmas até que grau cabe esperar represálias, no caso de proclamações episcopais. Se ficamos calados, caro Conde, também calamos ad maiora mala vitanda (para evitar males maiores).

FONTANA (comovido): Mas o Núncio de Vossa Santidade em Bratislava, com o seu protesto, salvou a vida de inúmeras vítimas, sem que os assassinos se vingassem.
PAPA: Lembrai-vos de Nossa última mensagem de natal; foi toda uma súplica pelo amor ao próximo. E qual o resultado? Os assassinos simplesmente a ignoraram.
FONTANA: Santíssimo Padre, também eu senti imenso pesar ao ver que a mensagem não produziu efeito. Mas, lamentavelmente, nela Vossa Santidade não mencionava expressis verbis os judeus, nem tampouco o terror dos bombardeamentos contra cidades abertas. A mim me parece que, diante de Hitler e Churchill, é preciso falar com a franqueza mais rude.

[…]

RICCARDO (perdendo por momentos o domínio de si mesmo): Esse auxílio só alcança alguns judeus da Itália, Eminência! Isso também já foi discutido muitas vezes. (Voltando-se para falar simultaneamente ao Papa): Mas o terror reina agora em todos os países! Só na Polônia já foram assassinados um milhão e oitocentos mil judeus! E como esta cifra foi transmitida oficialmente em julho ao Legado Papal em Washington, pelo Embaixador de Varsóvia junto à Casa Branca – Deus não há de querer que Vossa Santidade a ignore!
CARDEAL (indignado): Saia daqui para fora... não é mesmo … como se atreve a falar desse modo na presença do Santo Padre! Conde, proíba seu filho...

Durante as últimas palavras de Riccardo o Papa levantara-se, mas depois volta a sentar-se. Decorre um momento antes que consiga falar, o que faz com grande esforço.

PAPA: 'ignorar'! Não temos a intenção de prestar contas a Riccardo Fontana. O Senhor seu Pai não tem nada a dizer? Não obstante, gostaríamos de acrescentar algumas palavras ao assunto. (Com aspereza crescente, numa tentativa de mudar de tema): Sabeis, vós, Sr. Secretário, exempli causa, que há algumas semanas já estávamos preparados, com ouro, com grande soma de ouro, para ajudar os judeus de Roma, que queriam deportar, a sair de sua dificuldade? Os bandidos de Hitler prometeram a liberdade dos judeus mediante resgate. Depois, quiseram exigir-nos uma soma completamente fora da realidade, uma chantagem. Pois ainda assim, pagamos!

RICCARDO (volta-se desconcertado para o pai; depois, diz rapidamente ao Papa): Então Vossa Santidade já sabia, há várias semanas, o que os SS queriam fazer aos judeus?
PAPA (irritado, evasivo): Que dizeis?! O Superior-Geral poderá confirmar tudo o que já se fez. Os conventos e mosteiros estão de portas abertas...

[…]

FONTANA (interpondo-se entre o filho e o Papa): Posso falar pelo meu filho, Beatíssimo Padre?
PAPA: De que se trata, Conde?
FONTANA: Santidade, se ousasse pedir-vos, com toda a humildade... Ameaçai Hitler de forçar quinhentos milhões de católicos a protestar cristãmente se ele continua com os assassínios em massa!

O Papa vê que tem de responder de modo objetivo a este experimentado conselheiro. Está desgostoso, irritado e fala como se voltasse a dizer o que já tinha explicado mil vezes antes. Não obstante, consegue dominar-se, aproxima-se de Fontana e põe-lhe a mão no ombro.

PAPA: Fontana! Um conselheiro da vossa perspicácia! Como é amargo que também vós não Nos compreendais. Não vedes que a catástrofe é iminente para a Europa cristã, se Deus não Nos utiliza, a Santa Sé, como Mediador? A hora é tenebrosa, embora tenhamos por certo que o Vaticano não será atacado. Herr Hitler renovou muito recentemente a sua garantia. Mas... e os Nossos batéis que estão ao largo e temos de pilotar? A Polônia, todos os Balcãs e também a Áustria e a Baviera.... a que portos irão arribar? Poderiam naufragar facilmente na tormenta, ou ser arrastados à deriva para os recifes de Stalin. Hoje, a Alemanha é Hitler. Só os fantasistas diriam que a queda do atual regime alemão não teria como consequência o colapso da frente militar. Pelos generais de Hitler que o querem suprimir, não temos o menor respeito. Eles queriam negociar na primavera de 1940. E como o fizeram? Deixaram-se condecorar por Hitler e reduziram a Europa inteira a escombros. Conhecemos essa gente desde que estivemos em Berlim : os generais não têm nenhuma opinião. Se Hitler cai, voltam para casa...
CARDEAL: E Stalin ficaria com o caminho livre para Varsóvia, Praga e até Viena... sim, direto ao Reno, não é mesmo?
PAPA (que se sentou outra vez): Verá bem claro isto o Presidente Roosevelt? Stalin nem sequer escuta uma palavra que ele diga. Desde a conferência de Casablanca [em janeiro de 1943], a razão deixou de dominar na Casa Branca. E Mr. Churchill é fraco demais. Não parece que se decida a abrir uma segunda frente no Ocidente. Ficaria feliz se os russos e alemães se exaurissem uns aos outros completamente na luta.

CARDEAL: Nós também não podemos ser muito contrários a isso, não é mesmo?
PAPA (sublinhando cada palavra com uma palmada no braço do trono): Somente Hitler defende hoje a Europa, caro Conde. E combaterá até a morte, porque um assassino não espera perdão. Não obstante, o Ocidente deve perdoá-lo na medida em que ele seja útil no Leste. Em março, declaramos publicamente que nada, absolutamente nada, tínhamos a ver com os objetivos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Primeiro, ele têm de acertar as coisas com os alemães. O Ministro de Assuntos Exteriores da Espanha, infelizmente, já propagou isso pelo mundo inteiro. Mas, seja como for, a Razão de Estado proíbe denunciar Hitler como um bandido, pois ele deve continuar a ser um interlocutor digno. Não temos alternativa. O Serviço Secreto de Hitler aqui em Roma entrou em contato com o Superior-Geral dos Jesuítas... é lamentável, Sr. Secretário, que nada saibais dos esforços de vosso Superior...

RICCARDO: Sei muito bem, Santíssimo Padre. Mas não entendo que possamos utilizar Hitler como instrumento.
PAPA: Um instrumento que atiraremos fora, tão logo...
CARDEAL: Louvado seja Deus, Sr. Secretário, que a sua opinião seja completamente insignificante.
RICCARDO (hostil): O Santo Padre me fez uma pergunta, Eminência! Devo responder, Santíssimo Padre?
PAPA (álgido): Objetivamente, sim, objetivamente. Objetivamente.
RICCARDO (em tom de ataque, cujo único resultado é já ninguém lhe dar ouvidos): Santíssimo padre, deve-se ter em mente que nós, os jesuítas, estamos formando há anos especialistas para a Rússia, que seguiriam atrás de Hitler, isto é, das tropas alemãs, com o fim de catequizar os russos.
CARDEAL (furioso): Sim... e daí? Poderia prever, Sr. Secretário, antes da invasão, que Stalin conseguiria aguentar tanto tempo?
RICCARDO (outra vez para o Papa): Também os comentários de muitos Bispos sobre a pretensa cruzada de Hitler são... blasfêmias. Também é culpa do Vaticano, Santíssimo Padre, se agora a tormenta vermelha ameaça a Europa. Quem semeia ventos... Resumindo, a Rússia é que foi atacada!

O Papa faz um par de movimentos nervosos com as mãos. Cala-se, seja por estar tão agitado que não consegue articular a voz – como antes – seja por considerar abaixo de sua dignidade o dar resposta.


[...]

pp. 179-191 (trechos)

fonte: HOCHHUTH, Rollf. O Vigário. [Der Stellvertreter] trad. João Alves dos Santos. Grijalbo, 1965.


mais info em



sobre a Conferência de Casablanca
janeiro de 1943


filme Amen [2002] de Costa Gravas
baseado na peça de Hochhuth

para ouvir


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