segunda-feira, 24 de março de 2014

1944 / o drama do Holocausto [Shoah]





1944


A sistemática do Holocausto [Shoah]

(trecho de A Lista de Schindler)

Durante as neves daquele ano, Plaszòvia [Plaszow] passou por uma adversa mudança nas condições sociais de todos os amantes do campo. Nos primeiros dias de janeiro de 1944, foi organizado um Konzentrationslager (Campo de Concentração) sob a autoridade central do General SS Oswald Pohl, do Escritório Econômico e Administrativo em Oranienburg, nas cercanias de Berlim. Subcampos de Plaszóvia – tais como o da Emalia [fábrica de esmaltados], de Schindler – também passaram a ser controladas em Oranienburg. Os chefes de polícia Scherner e Czurda perderam autoridade direta. Os salários de trabalho de todos os prisioneiros empregados por Oskar e Madritsch não foram mais para a Rua Pomorska mas para o escritório dp General Richard Glücks, chefe da Seção D (Campos de Concentração) de Pohl. Agora, quanto precisava de favores, Oskar não tinha de ir somente a Plaszóvia amaciar Amon [comandante Amon Goeth] e convidar Julian Scherner para jantar, mas também entrar em contato com certos funcionários do grande complexo burocrático de Oranienburg.


Oskar logo arranjou uma oportunidade de viajar para Berlim e travar conhecimento com as pessoas que iriam lidar com a sua ficha. Oranienburg tinha começado como um campo de concentração. Agora se tornara uma vasta organização administrativa. Nos escritórios da Seção D, eram regulamentados todos os aspectos da vida e da morte de prisioneiros. O seu chefe, Richard Glücks, tinha também a responsabilidade, de acordo com Pohl, de estabelecer o equilíbrio entre trabalhadores e candidatos às câmaras de gás, para a equação em que X representava trabalho e Y representava os próximos condenados.


[…]


Nessa sinistra chancelaria, alguns arquivos se referiam a discussões sobre qual o comprimento obrigatório do cabelo de um prisioneiro, material considerado utilizável economicamente 'na manufatura de meias para tripulações de submarinos e feltro de cabelo para calçados', ao passo que em outros se discutia se o formulário registrando 'casos de morte' devia ser arquivado por oito departamentos ou simplesmente citado por carta e apenso aos registros de pessoal, a fim de que as fichas de arquivo fossem atualizadas. E era nessa chancelaria que Herr Oskar Schindler de Cracóvia [Kraków] precisava falar do seu pequeno conjunto industrial em Zablocie. [...]”
pp. 231-32


Agora que Plaszóvia era – na linguagem dos burocratas – um campo de cocnentração, seus prisioneiros constataram ser menos perigoso deparar com Amon [Goeth, comandante]. Os chefes de Oranienburg não permitiam mais as execuções sumárias. Os tempos em que era fuzilado quem não descascasse batatas com bastante rapidez pertenciam ao passado. Agora só podiam se liquidados através de um processo legal. Tinha de haver um interrogatório e um relatório remetido em três cópias para Oranienburg. A sentença precisava ser confirmada não apenas pelo escritório do Genral Glück mas também pelo Departamento W (Empreendimentos Econômicos) do General Pohl. Se um comandante matasse algum dos trabalhadores essenciais, o Departamento W podia ver-se a braços com reivindicações de compensação. Allach-Munich, Ltd., por exemplo, fabricantes de porcelana, que usavam trabalho escravo de Dachau, tinham recentemente exigido uma indenização de 31.800 RM porque 'em resultado de epidemia de febre tifóide que surgiu em 1943, deixamos de ter à nossa disposição mão-de-obra de prisioneiros desde 26 de janeiro de 1943 até 3 de março de 1943. em nossa opinião temos direito à compensação, de acordo com a Cláusula 2 do Fundo de Compensação Comercial …'


O Departamento W ficava ainda mais obrigado a compensações, se a perda de mão-de-obra especializada era causada pelo zelo de algum oficial da SS rápido no gatilho.


Assim, para evitar a burocracia e as complicações departamentais, Amon passou a conter-se um pouco. As pessoas que apareciam na sua proximidade, na primavera e começo do verão de 1944, de certa forma se sentiam mais seguras, embora nada soubessem sobre o Departamento W e os Generais Pohl e Glücks. Para elas era um indulto tão misterioso quanto a própria demência de Amon.


Contudo, como Oskar tinha mencionado a henry Rosner, eles agora queimavam os corpos em Plaszóvia. Preparando-se para a ofensiva russa, a SS estava abolindo suas instituições no Leste. Treblinka, Sobibor e Belzec haviam sido evacuados no outono anterior. A Waffen SS, que os administrava, recebera ordem de dinamitar as câmaras de gás e crematórios, não deixar vestígio algum reconhecível, e fora transferida para a Itália, a fim de combater os guerrilheiros. O imenso complexo de Auschwitz, em terreno seguro no norte da Silésia, completaria a grande tarefa no Leste e, uma vez concluída, o crematório seria soterrado. Pois, sem a evidência do crematório, os mortos não podiam prestar testemunho, eram um sussurro no vento, uma poeira inconsistente nas folhas dos álamos.


Plaszóvia não era de solução tão simples, porque os seus mortos jaziam por toda parte em seu redor. No furor da primavera de 1942, cadáveres – sobretudo os das pessoas assassinadas nos últimos dois dias do gueto – eram jogados a esmo em valas comuns nos bosques. Agora, o Departamento D encarregou Amon de descobrir todas aquelas valas.


Os cálculos quanto à quantidade de corpos variam muito. Publicações polonesas, baseadas no trabalho da Comissão Central para investigação de Crimes nazistas na Polônia e em outras fontes de informação, afirmam que 150 mil prisioneiros, muitos deles em trânsito para outros locais, passaram por Plazsóvia e seus cinco subcampos. Desses, os poloneses acreditam que 80 mil morreram ali, muitos em execuções em massa dentro de Chujowa Górka ou vítimas de epidemias.


Essa estimativa desconcerta os sobreviventes de Plaszóvia que se lembram do horrendo trabalho de queimar os mortos. Afirmam que só o número de corpos, por eles exumados, atinge mais ou menos entre oito mil e dez mil – proporção apavorante, e que eles não têm a menor vontade de exagerar. A diferença entre as duas estimativas fica mais chocante, quando lembramos que execuções de poloneses, ciganos e judeus continuariam em Chujowa Górka e em outros pontos nas circunvizinhanças de Plaszóvia, durante quase todos aqueles anos, e que os próprios SS adotaram a prática de queimar corpos imediatamente após as execuções em massa no morro do forte austríaco. Além disso, Amon não iria conseguir realizar a sua intenção de remover dos bosques todos os corpos. Alguns milhares mais seriam encontrados em exumações no pós-guerra e hoje, quando os subúrbios de Cracóvia [Kraków] se aproximam cada vez mais de Plaszóvia, ainda são encontrados ossos nas escavações para fundações.


Oskar viu a enfiada de piras na elevação do terreno acima das oficinas, durante uma visita pouco antes de seu aniversário. Quando voltou, uma semana depois, a atividade havia aumentado. Os corpos eram desenterrados por prisioneiros que trabalhavam de rosto tapado. Em cobertores, padiolas e macas eram levados para o local da incineração e depositados sobre toras de madeira. A pira era arrumada camada por camada, e quando alcançava a altura do ombro de um homem, encharcada com combustível e acesa. Pfefferberg se horrorizara, vendo a vida temporária com que as chamas animavam os mortos, a maneira como os corpos se sentavam, atirando para longe as toras ardentes, os membros estirando-se, as bocas se escancarando como para um derradeiro grito. Um jovem SS da estação de despiolhamento corria entre as piras, sacudindo a pistola e esbravejando ordens frenéticas.


A fuligem dos mortos recaía nos cabelos dos vivos e sobre as roupas postas a secar nos varais do quintal dos oficiais subalternos. Oskar ficou pasmo ao ver a indiferença com que o pessoal do campo aceitava a fumaça, como se a fuligem no ar proviesse de alguma honesta e inevitável precipitação industrial. No ar esfumaçado, Amon saía a cavalo com Majola, ambos muito calmos em suas montarias. Leo John levava o filho de doze anos para apanhar sapos no terreno pantanoso da mata. As chamas e a fedentina não lhes perturbavam a vida quotidiana.”
pp. 241-243


fonte: KENEALLY, Thomas. A Lista de Schindler. 13ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.




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filme Schindler's List




sexta-feira, 14 de março de 2014

Discursos de Thomas Mann [ trechos ] 1944






Thomas Mann


Ouvintes Alemães – Discursos contra Hitler


[trechos de discursos de 1944]


30 de janeiro de 1944


Ouvintes alemães!

   “Quando lemos certas manifestações da propaganda nazista que continuam sendo difundidas de forma mecânica e quase inaudível, nos perguntamos se são o produto do isolamento doentio, do terrível afastamento do mundo e da realidade, se provêm de um inconformismo da loucura ou se significam a falsificação atrevida da razão, a insolente inversão de sentido da linguagem, a consciente distorção da verdade. “Olha-se para o mundo”, disse Goebbels, “e vem a pergunta sobre se a vida ainda teria algum sentido para a humanidade se nossos inimigos atingissem seu objetivo.” isso é insolência ou loucura? É talvez uma mistura das duas. Mas essa mistura é ainda mais repugnante do que cada uma delas separadamente. Já o mero fato de ouvir a palavra 'humanidade' vinda dessa boca nos revolve o estômago. De onde ele a tira? Faz parte de seu vocabulário? Será que lhe falta bom senso para reconhecer que em posições caracterizadas por certas doutrinas e atos – a posição nacional-socialista, por exemplo – é preciso se abster de determinadas palavras e conceitos para pertencerem a uma outra esfera, a uma contraesfera, e por não lhe dizerem respeito? Será que ele pensa que se pode simplesmente roubar, saquear e 'expropriar' no âmbito espiritual e moral como se faz no da realidade? Que ideia é essa de falar sobre 'humanidade'? Será que ele alguma vez acreditou nisso? Será que ele, seu Führer e todo seu bando, todos esses filósofos-carrascos e ajudantes de carrasco, não debocharam, eliminaram por decreto, abusaram e assassinaram a humanidade, a própria ideia de ser humano, sempre que puderam? E ele se preocupa humanamente com o sentido que a vida terá para a humanidade quando ela se livrar do nacional-socialismo! É isso, o nazismo, que ele toma pelo sentido da humanidade – ou seja, isso contra o que os povos sedentos de paz resolveram, pegando em armas tardia e desesperadamente, proteger sua humanidade, sua dignidade humana e sua liberdade diante da queda na escravidão bárbara. Leste e Oeste se sacrificam e sangram por terem se colocado a questão – razoável e própria dos espíritos saudáveis – sobre o sentido da vida no caso de a Alemanha nazista atingir seu objetivo, a saber, a submissão do mundo. Goebbels sabe disso, por isso utiliza o truque do deboche louco, ou da loucura debochada, de distorcer a pergunta.


[...]




28 de fevereiro de 1944


Ouvintes alemães!

[…]


     “Que vergonha pensar na hecatombe das vidas humanas que caíram vítimas do herói desolador desse livro [de Konrad Heiden, “Führer's Rise to Power”] e que ainda continuam caindo! Permitiram-lhe que dissesse: “Estou pronto a pagar com dois milhões de vidas alemãs para alcançar meu objetivo” - o objetivo de, após a profanação da Alemanha, profanar o mundo inteiro através do nacional-socialismo. Bem, a cifra de dois milhões foi há muito superada, mesmo se só fossem contados os alemães que morreram no campo de batalha. Mas a conta sangrenta da guerra total que o mundo teve se aprender com a Alemanha é bem outra, muito mais alta –e, claro, não é apenas uma conta alemã. Deve-se acrescentar as perdas da Rússia, que são ainda maiores. Deve-se ter em conta a colheita que a morte fez entre os povos violentados da Europa, entre poloneses e judeus, tchecos, gregos, noruegueses, holandeses, iugoslavos, os assassinatos em massa, os suicídios. Temos de acrescentar por antecipação os terríveis sacrifícios que os povos anglo-saxões ainda terão de trazer à batalha final, povos que, eles próprios, estão condenados a trazer morte e destruição por quererem a paz por tempo demais. E ainda teremos de somar o que o duende do mal, de quem o livro conta a história, terá custado ao mundo. Serão 20 ou 25 milhões de vidas? Talvez mais, muito mais, se for incluída toda a destruição causada diretamente. E para quê toda essa torrente de sangue? Para que um vazio, um zero, dele se inche como o ventre de uma aranha.

     A humanidade nunca vai se perdoar por ter deixado acontecer o que aconteceu e ainda vai acontecer. E nunca vai compreender por que um povo, o alemão, mesmo depois que toda ilusão e toda esperança se dissiparam, continua a lutar com coragem de leão, com louca tenacidade, até a Europa se transformar em um campo fumegante de ruínas habitado apenas por umas poucas criaturas que vagueiam como lobos – só para prolongar a vida de um punhado de notórios patifes e libertinos do poder cujo domínio é um peso para eles mesmo e definitivamente inaceitável para o resto do mundo.





28 de março de 1944


Ouvintes alemães!

      “Nos países livres, a guerra total, os bombardeios às cidades alemães e a miséria que eles trazem à população civil são um problema de consciência pública. Não faltam vozes na Inglaterra nem na América que condenem alto e bom som, sem medo – também sem nenhum impedimento - , essa terrível maneira de conduzir a guerra e que reclamam severamente que assim se desce ao nível infame do inimigo e se degrada a humanidade que se pretende defender. Esses protestos são altamente dignos e o sentimento que os origina não é estranho a nenhuma pessoa civilizada. O que aconteceu em Colônia, Hamburgo, Berlim e outros lugares é horrível e ajuda pouco dizer a si mesmo que brutalidade desmedida deve ser combatida com brutalidade desmedida; que aqui reina Nêmesis e que não se trata de uma ação e sim, muito mais, de um acontecimento de vingança. Certamente, a gritaria dos nazistas é desprezível; sua propaganda contra os 'hunos dos ares' nasceu morta e é mortalmente impotente. Mas trata-se da consciência da liberdade, dos atos trágicos que terá de cometer, daquilo que lhe é estranho e não natural, daquilo que por sua própria lei moral não deve fazer e, no entanto, por causa da proclamação da violência sobre a Terra, é obrigada a fazer. O dilema é difícil, inquietante e opressivo.


     E mesmo assim não é dilema algum. Uma só palavra ou notícia da terra dos nazis basta para eliminá-lo, para resolver a questão, para calar toda dúvida e nos fazer sentir que há uma infâmia da mentira, uma infâmia derradeira e diabolicamente atrevida, insuperável e insuportável, incompatível com a existência humana, uma infâmia que exige a chuva de fogo e enxofre e que só pode ser respondida de uma maneira: com bombas, com a aniquilação.

[…]

pp. 167- 174 [trechos]


Fonte: MANN, Thomas. Ouvintes alemães!: discursos contra Hitler (1940-1945). (Deutsche Hörer!) Trad. Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.



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sobre a Campanha de bombardeio estratégico contra a Alemanha





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