sexta-feira, 14 de março de 2014

Discursos de Thomas Mann [ trechos ] 1944






Thomas Mann


Ouvintes Alemães – Discursos contra Hitler


[trechos de discursos de 1944]


30 de janeiro de 1944


Ouvintes alemães!

   “Quando lemos certas manifestações da propaganda nazista que continuam sendo difundidas de forma mecânica e quase inaudível, nos perguntamos se são o produto do isolamento doentio, do terrível afastamento do mundo e da realidade, se provêm de um inconformismo da loucura ou se significam a falsificação atrevida da razão, a insolente inversão de sentido da linguagem, a consciente distorção da verdade. “Olha-se para o mundo”, disse Goebbels, “e vem a pergunta sobre se a vida ainda teria algum sentido para a humanidade se nossos inimigos atingissem seu objetivo.” isso é insolência ou loucura? É talvez uma mistura das duas. Mas essa mistura é ainda mais repugnante do que cada uma delas separadamente. Já o mero fato de ouvir a palavra 'humanidade' vinda dessa boca nos revolve o estômago. De onde ele a tira? Faz parte de seu vocabulário? Será que lhe falta bom senso para reconhecer que em posições caracterizadas por certas doutrinas e atos – a posição nacional-socialista, por exemplo – é preciso se abster de determinadas palavras e conceitos para pertencerem a uma outra esfera, a uma contraesfera, e por não lhe dizerem respeito? Será que ele pensa que se pode simplesmente roubar, saquear e 'expropriar' no âmbito espiritual e moral como se faz no da realidade? Que ideia é essa de falar sobre 'humanidade'? Será que ele alguma vez acreditou nisso? Será que ele, seu Führer e todo seu bando, todos esses filósofos-carrascos e ajudantes de carrasco, não debocharam, eliminaram por decreto, abusaram e assassinaram a humanidade, a própria ideia de ser humano, sempre que puderam? E ele se preocupa humanamente com o sentido que a vida terá para a humanidade quando ela se livrar do nacional-socialismo! É isso, o nazismo, que ele toma pelo sentido da humanidade – ou seja, isso contra o que os povos sedentos de paz resolveram, pegando em armas tardia e desesperadamente, proteger sua humanidade, sua dignidade humana e sua liberdade diante da queda na escravidão bárbara. Leste e Oeste se sacrificam e sangram por terem se colocado a questão – razoável e própria dos espíritos saudáveis – sobre o sentido da vida no caso de a Alemanha nazista atingir seu objetivo, a saber, a submissão do mundo. Goebbels sabe disso, por isso utiliza o truque do deboche louco, ou da loucura debochada, de distorcer a pergunta.


[...]




28 de fevereiro de 1944


Ouvintes alemães!

[…]


     “Que vergonha pensar na hecatombe das vidas humanas que caíram vítimas do herói desolador desse livro [de Konrad Heiden, “Führer's Rise to Power”] e que ainda continuam caindo! Permitiram-lhe que dissesse: “Estou pronto a pagar com dois milhões de vidas alemãs para alcançar meu objetivo” - o objetivo de, após a profanação da Alemanha, profanar o mundo inteiro através do nacional-socialismo. Bem, a cifra de dois milhões foi há muito superada, mesmo se só fossem contados os alemães que morreram no campo de batalha. Mas a conta sangrenta da guerra total que o mundo teve se aprender com a Alemanha é bem outra, muito mais alta –e, claro, não é apenas uma conta alemã. Deve-se acrescentar as perdas da Rússia, que são ainda maiores. Deve-se ter em conta a colheita que a morte fez entre os povos violentados da Europa, entre poloneses e judeus, tchecos, gregos, noruegueses, holandeses, iugoslavos, os assassinatos em massa, os suicídios. Temos de acrescentar por antecipação os terríveis sacrifícios que os povos anglo-saxões ainda terão de trazer à batalha final, povos que, eles próprios, estão condenados a trazer morte e destruição por quererem a paz por tempo demais. E ainda teremos de somar o que o duende do mal, de quem o livro conta a história, terá custado ao mundo. Serão 20 ou 25 milhões de vidas? Talvez mais, muito mais, se for incluída toda a destruição causada diretamente. E para quê toda essa torrente de sangue? Para que um vazio, um zero, dele se inche como o ventre de uma aranha.

     A humanidade nunca vai se perdoar por ter deixado acontecer o que aconteceu e ainda vai acontecer. E nunca vai compreender por que um povo, o alemão, mesmo depois que toda ilusão e toda esperança se dissiparam, continua a lutar com coragem de leão, com louca tenacidade, até a Europa se transformar em um campo fumegante de ruínas habitado apenas por umas poucas criaturas que vagueiam como lobos – só para prolongar a vida de um punhado de notórios patifes e libertinos do poder cujo domínio é um peso para eles mesmo e definitivamente inaceitável para o resto do mundo.





28 de março de 1944


Ouvintes alemães!

      “Nos países livres, a guerra total, os bombardeios às cidades alemães e a miséria que eles trazem à população civil são um problema de consciência pública. Não faltam vozes na Inglaterra nem na América que condenem alto e bom som, sem medo – também sem nenhum impedimento - , essa terrível maneira de conduzir a guerra e que reclamam severamente que assim se desce ao nível infame do inimigo e se degrada a humanidade que se pretende defender. Esses protestos são altamente dignos e o sentimento que os origina não é estranho a nenhuma pessoa civilizada. O que aconteceu em Colônia, Hamburgo, Berlim e outros lugares é horrível e ajuda pouco dizer a si mesmo que brutalidade desmedida deve ser combatida com brutalidade desmedida; que aqui reina Nêmesis e que não se trata de uma ação e sim, muito mais, de um acontecimento de vingança. Certamente, a gritaria dos nazistas é desprezível; sua propaganda contra os 'hunos dos ares' nasceu morta e é mortalmente impotente. Mas trata-se da consciência da liberdade, dos atos trágicos que terá de cometer, daquilo que lhe é estranho e não natural, daquilo que por sua própria lei moral não deve fazer e, no entanto, por causa da proclamação da violência sobre a Terra, é obrigada a fazer. O dilema é difícil, inquietante e opressivo.


     E mesmo assim não é dilema algum. Uma só palavra ou notícia da terra dos nazis basta para eliminá-lo, para resolver a questão, para calar toda dúvida e nos fazer sentir que há uma infâmia da mentira, uma infâmia derradeira e diabolicamente atrevida, insuperável e insuportável, incompatível com a existência humana, uma infâmia que exige a chuva de fogo e enxofre e que só pode ser respondida de uma maneira: com bombas, com a aniquilação.

[…]

pp. 167- 174 [trechos]


Fonte: MANN, Thomas. Ouvintes alemães!: discursos contra Hitler (1940-1945). (Deutsche Hörer!) Trad. Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.



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sobre a Campanha de bombardeio estratégico contra a Alemanha





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