Thomas
Mann
Ouvintes
Alemães – Discursos contra Hitler
[trechos
de discursos de 1944]
30
de janeiro de 1944
Ouvintes
alemães!
“Quando
lemos certas manifestações da propaganda nazista que continuam
sendo difundidas de forma mecânica e quase inaudível, nos
perguntamos se são o produto do isolamento doentio, do terrível
afastamento do mundo e da realidade, se provêm de um inconformismo
da loucura ou se significam a falsificação atrevida da razão, a
insolente inversão de sentido da linguagem, a consciente distorção
da verdade. “Olha-se para o mundo”, disse Goebbels, “e vem a
pergunta sobre se a vida ainda teria algum sentido para a humanidade
se nossos inimigos atingissem seu objetivo.” isso é insolência ou
loucura? É talvez uma mistura das duas. Mas essa mistura é ainda
mais repugnante do que cada uma delas separadamente. Já o mero fato
de ouvir a palavra 'humanidade' vinda dessa boca nos revolve o
estômago. De onde ele a tira? Faz parte de seu vocabulário? Será
que lhe falta bom senso para reconhecer que em posições
caracterizadas por certas doutrinas e atos – a posição
nacional-socialista, por exemplo – é preciso se abster de
determinadas palavras e conceitos para pertencerem a uma outra
esfera, a uma contraesfera, e por não lhe dizerem respeito? Será
que ele pensa que se pode simplesmente roubar, saquear e 'expropriar'
no âmbito espiritual e moral como se faz no da realidade? Que ideia
é essa de falar sobre 'humanidade'? Será que ele alguma vez
acreditou nisso? Será que ele, seu Führer e todo seu bando,
todos esses filósofos-carrascos e ajudantes de carrasco, não
debocharam, eliminaram por decreto, abusaram e assassinaram a
humanidade, a própria ideia de ser humano, sempre que puderam? E ele
se preocupa humanamente com o sentido que a vida terá para a
humanidade quando ela se livrar do nacional-socialismo! É isso, o
nazismo, que ele toma pelo sentido da humanidade – ou seja, isso
contra o que os povos sedentos de paz resolveram, pegando em armas
tardia e desesperadamente, proteger sua humanidade, sua dignidade
humana e sua liberdade diante da queda na escravidão bárbara. Leste
e Oeste se sacrificam e sangram por terem se colocado a questão –
razoável e própria dos espíritos saudáveis – sobre o sentido da
vida no caso de a Alemanha nazista atingir seu objetivo, a saber, a
submissão do mundo. Goebbels sabe disso, por isso utiliza o truque
do deboche louco, ou da loucura debochada, de distorcer a pergunta.
[...]
28
de fevereiro de 1944
Ouvintes
alemães!
[…]
“Que
vergonha pensar na hecatombe das vidas humanas que caíram vítimas
do herói desolador desse livro [de Konrad Heiden, “Führer's
Rise to Power”] e que ainda continuam caindo! Permitiram-lhe
que dissesse: “Estou pronto a pagar com dois milhões de vidas
alemãs para alcançar meu objetivo” - o objetivo de, após a
profanação da Alemanha, profanar o mundo inteiro através do
nacional-socialismo. Bem, a cifra de dois milhões foi há muito
superada, mesmo se só fossem contados os alemães que morreram no
campo de batalha. Mas a conta sangrenta da guerra total que o mundo
teve se aprender com a Alemanha é bem outra, muito mais alta –e,
claro, não é apenas uma conta alemã. Deve-se acrescentar as perdas
da Rússia, que são ainda maiores. Deve-se ter em conta a colheita
que a morte fez entre os povos violentados da Europa, entre poloneses
e judeus, tchecos, gregos, noruegueses, holandeses, iugoslavos, os
assassinatos em massa, os suicídios. Temos de acrescentar por
antecipação os terríveis sacrifícios que os povos anglo-saxões
ainda terão de trazer à batalha final, povos que, eles próprios,
estão condenados a trazer morte e destruição por quererem a paz
por tempo demais. E ainda teremos de somar o que o duende do mal, de
quem o livro conta a história, terá custado ao mundo. Serão 20 ou
25 milhões de vidas? Talvez mais, muito mais, se for incluída toda
a destruição causada diretamente. E para quê toda essa torrente de
sangue? Para que um vazio, um zero, dele se inche como o ventre de
uma aranha.
A
humanidade nunca vai se perdoar por ter deixado acontecer o que
aconteceu e ainda vai acontecer. E nunca vai compreender por que um
povo, o alemão, mesmo depois que toda ilusão e toda esperança se
dissiparam, continua a lutar com coragem de leão, com louca
tenacidade, até a Europa se transformar em um campo fumegante de
ruínas habitado apenas por umas poucas criaturas que vagueiam como
lobos – só para prolongar a vida de um punhado de notórios
patifes e libertinos do poder cujo domínio é um peso para eles
mesmo e definitivamente inaceitável para o resto do mundo.
28
de março de 1944
Ouvintes
alemães!
“Nos
países livres, a guerra total, os bombardeios às cidades alemães e
a miséria que eles trazem à população civil são um problema de
consciência pública. Não faltam vozes na Inglaterra nem na América
que condenem alto e bom som, sem medo – também sem nenhum
impedimento - , essa terrível maneira de conduzir a guerra e que
reclamam severamente que assim se desce ao nível infame do inimigo e
se degrada a humanidade que se pretende defender. Esses protestos são
altamente dignos e o sentimento que os origina não é estranho a
nenhuma pessoa civilizada. O que aconteceu em Colônia, Hamburgo,
Berlim e outros lugares é horrível e ajuda pouco dizer a si mesmo
que brutalidade desmedida deve ser combatida com brutalidade
desmedida; que aqui reina Nêmesis e que não se trata de uma ação
e sim, muito mais, de um acontecimento de vingança.
Certamente, a gritaria dos nazistas é desprezível; sua propaganda
contra os 'hunos dos ares' nasceu morta e é mortalmente impotente.
Mas trata-se da consciência da liberdade, dos atos trágicos que
terá de cometer, daquilo que lhe é estranho e não natural, daquilo
que por sua própria lei moral não deve fazer e, no entanto, por
causa da proclamação da violência sobre a Terra, é obrigada a
fazer. O dilema é difícil, inquietante e opressivo.
E
mesmo assim não é dilema algum. Uma só palavra ou notícia da
terra dos nazis basta para eliminá-lo, para resolver a questão,
para calar toda dúvida e nos fazer sentir que há uma infâmia da
mentira, uma infâmia derradeira e diabolicamente atrevida,
insuperável e insuportável, incompatível com a existência humana,
uma infâmia que exige a chuva de fogo e enxofre e que só pode ser
respondida de uma maneira: com bombas, com a aniquilação.
[…]
pp.
167- 174 [trechos]
Fonte:
MANN, Thomas. Ouvintes alemães!: discursos contra Hitler
(1940-1945). (Deutsche Hörer!) Trad. Antonio Carlos dos
Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
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a Campanha de bombardeio estratégico contra a Alemanha
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