quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Thomas Mann sobre a derrota alemã em Stalingrado




Discurso de Thomas Mann

BBC
Discursos contra Hitler


23 de fevereiro de 1943


Ouvintes alemães!


Um dia a história terá uma opinião dividida sobre o que é mais repugnante, as ações ou as palavras dos nazistas. Também será difícil decidir quando essa corja insultou mais a humanidade: quando mentia ou quando dizia a verdade. Em certas bocas até mesmo a verdade se torna mentira, um meio de enganar – e não se pode mentir de modo mais repugnante do que dizendo a verdade. Goebbels e os seus se regalaram recentemente no amor à verdade. A franca seriedade com que informaram o povo alemão do desastre na Rússia- que, sem dúvida, constitui um dos mais devastadores fracassos da história da guerra – foi monumental e impressionante. Não houve nenhuma tentativa de atenuar o horrível fim do cerco a Stalingrado – a não ser, talvez, a não-menção ao fato de Hitler ser o único responsável por essa catástrofe. Enquanto a notícia era transmitida, não se tocava no rádio o hino do Partido, a canção de Horst Wessel, que poderia cair mal, e sim 'Ich hatt' einen Kameraden' [Eu tive um companheiro]. Foi declarado luto de quatro dias, luto pelos crimes fracassados do regime nazista – um deboche do luto verdadeiro que atingiu o povo alemão com a perda sem sentido de 10 mil [sic] de seus filhos. Aquilo que podia render revolta, desespero e insubordinação foi enterrado com o luto. Vamos todos juntos ficar de luto, o líder e seus liderados, e cantar 'Ich hatt' einen Kameraden' !


O ressaibo repulsivo da veracidade resulta dos objetivos que se procurou alcançar com ela. Sua meta era, primeiro, utilizar o elementar patriotismo do povo para a salvação do regime, organizando suas últimas forças para uma mobilização em massa – de modo que o organizador tivesse menos a ver com os acontecimentos duvidosos dessa última convocação do que com a respectiva emoção diversionista. Segundo, a vitória dos russos e a derrota dos nazistas foram anunciadas com tanta franqueza e honestidade, e, no que foi possível, ainda exagerada, para amedrontar o mundo anglo-saxão com o 'perigo vermelho', com a invasão do continente europeu pelo bolchevismo. A mensagem confusa de Hitler mandou que fosse lida no décimo ano da tomada do poder [Machtergreifung em 1933] é cheia de advertências chantagistas desse tipo, cheia da retórica do voo de Rudolf Hess sobre o canal da Mancha, advertências feitas com a esperança teimosa de trazer para o seu lado a Inglaterra e os Estados Unidos contra a 'Ásia Central', ou seja, a Rússia. O Leste asiático, a saber, o Japão, seu aliado, é muito bom, mas a 'Ásia Central', a Rússia, que ele de maneira ousada e burra atacou, é o inimigo do mundo. Ele mesmo, Hitler, é a Europa fina, honrada, sensível, culta, mas a terra de Puchkin, Gogol e Tolstói é região dos hunos, cujas hordas se preparam para lançar o próspero continente de Hitler em uma 'barbárie inimaginável'.


É um embuste infeliz e não vai funcionar. Os nazistas querem dar a impressão de que sabem jogar segundo as regras sociais e Göring dispara uma alusão tão discreta quanto ele : 'Quando muito, faremos a paz com gentlemen, mas nunca com os soviéticos!' Será que eles ainda não sabem que qualquer acordo de paz será recusado? Que ninguém vai fazer a paz com eles, nem as democracias, nem o socialismo? [sic] Que a paz só virá depois deles? Quanto ao 'perigo vermelho', porém, ouçam o que disse Stálin em seu discurso de 6 de novembro de 1941: 'Nosso primeiro objetivo é libertar a terra russa e seus habitantes do jugo nazista. Não temos nem podemos ter como objetivo de guerra impor aos eslavos e outros povos subjugados da Europa nossa vontade ou nossa forma de governo.' E, através de seu embaixador Maisky, esclareceu: 'A União Soviética defende o direito de todas as nações à independência e à integridade de seu território … e também seu direito de construir uma ordem social e escolher uma forma de governo que lhe seja oportuna e necessária.' Em relação à Alemanha, no entanto, disse: 'Os Hitlers vêm e vão, mas o povo e o Estado alemão permanecem.' Ele tem certamente o desejo de punir aqueles que infligiram um sofrimento tão grande a seu país, mas nunca saiu de sua boca uma palavra de ameaça ou de desejo de destruição contra o povo alemão. Foi a Rússia que assaltou a Alemanha ou o contrário? Talvez não esteja longe o dia em que o povo alemão vai reconhecer a Rússia como um amigo sensato [sic].” pp. 129-132


nota: Horst Wessel, membro do Partido nazista, escreveu uma canção conhecida como 'Die Fahne hoch' (A bandeira hasteada) que foi praticamente o hino da Alemanha durante o Terceiro Reich, 'Ich hatt' einen Kameraden' é uma balada escrita por Ludwig Uhland em 1809 durante a Guerra Franco-Austríaca, cantada com a melodia da canção tradicional do século XVIII 'Ein schwarzbraunen Mädchen hat'nen Feldjäger lieb', que se tornou música quase obrigatória nas cerimônias militares. (NT)


Fonte: MANN, Thomas. Ouvintes Alemães! Discursos contra Hitler (1940-1945). trad. Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.


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seleção: LdeM

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