segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Resistência Francesa - Deportações - testemunho





Resistência Francesa

Deportações


Vários relatos sobre a Resistência Francesa etão disponíveis em várias mídias – livros, vídeos, documentários -geralmente com o foco no panorama histórico, da perspectiva da História, mas aqui temos um relato pessoal, na forma de um diário, tal qual testemunha um Primo Levi (1919-1987), sobre as atrocidades nazistas. Uma voz resistente, mulher que atuou na luta antifascista na França ocupada, que lutou com ânimo nacionalista contra as forças de opressão que não hesitaram em torturar, matar, deportar, condenar à trabalhos forçados.

Aqui apresentaremos alguns trechos da obra Resistência (publicada primeiramente em 1946) da francesa Agnés Humbert (1894-1963), que atuou em imprensa clandestina contra os nazistas, foi presa, sofreu um julgamento ao estilo nazi, e foi deportada para a Alemanha. Vejamos alguns trechos sobre a ocupação da França [em 1940], sobre as prisões [em 1941], sobre a deportação [em 1942] e sobre o bombardeio do III Reich (que, entre 1943 e 1945, danificou a infraestrutura e atingiu a população civil), além dos prisioneiros. (LdeM)



Paris, final de novembro de 1940

O comitê de redação do nosso jornal está formado. Marcel Abraham, Jean Cassou, Claude Aveline. Vildé diz que podemos dispor de três páginas. A primeira será redigida por 'aqueles senhores', os cavalheiros misteriosos que fornecem o papel e garantem o serviço de impressão. O nosso grupo de dez ficará com quatrocentos e quinhentos exemplares. Cabe a nós providenciar uma distribuição meticulosa, sobretudo a pessoas capazes de reproduzi-los. O nome do pato? Vildé sugeriu Libération, mas a ideia nos pareceu um pouco prematura. Decidiu-se (quem? Onde? Ignoramos) que será Résistance. Discutimos tendências políticas. De Gaulle contará com toda a nossa simpatia respeitosa... Devemos ser prudentes e conhecer seu ideal político; ser circunspectos durante algum tempo ao falar desse velho imbecil, o marechal. Todos sabemos quanto vale este Franco em miniatura. No entanto, muitos ainda não abriram os olhos. O futuro se encarregará de esclarecê-los. Mas correremos o risco de prejudicar a nossa causa se os alertarmos de maneira muito brusca. Estamos acumulando, a partir de hoje, documentos sobre o 'velho'. Trechos das Mémoires de Poincaré, Lloyd George e Clemenceau nos serão úteis quando chegar a hora. Nós o ajudaremos a mergulhar na lama onde ele já chafurda... Oh! Montoire! (*)

Devemos redigir o jornal na casa dos Martin-Chauffier, onde reside Claude Aveline no momento. No final do dia, Vildé me disse que Lewitsky virá pegar os 'papeis'. Lewitsky? Isso mesmo, responde Vildé, ele está conosco desde o primeiro dia. Fico contente em saber. Eu o conheço desde que fui trabalhar no palácio de Chaillot. Era sempre a ele que me dirigia quando precisava de alguma informação quanto ao Museu do Homem. Admiro tanto a sua cortesia, aquela cortesia, aquela cortesia inteligente dos russos... Fico felicíssima de saber que ele é um dos nossos!” (p. 28)

(*)Em Montoire-sur-le -Loir se deu o encontro entre Pétain e Hitler para definir a política de colaboração franco-alemã. (N.T.)




Prisão de La Santé, novembro de 1941

Já faz quatro meses que estou na Santé. Os dias se sucedem, silenciosos e quase idênticos. Algumas grandes alegrias, como a entrada dos Estados Unidos na guerra e notícias bem melhores do front russo. Pude ver Yvonne Oddon no pátio. Ela me disse que nosso processo vem sendo adiado de semana a semana. Tempo a ganhar para os homens, que, coitados, não se darão tão bem quanto nós.

Ouvi gritarem no pátio que Jean-Pierre foi executado em agosto. Não posso acreditar nisso. É estranho como a minha mente se recusa a aceitar as más notícias! Elas me parecem inacreditáveis. No entanto... Será possível que d'Estienne d'Orves não mais exista? Que todo o seu heroísmo tranquilo se encerre aqui? Penso nas suas confidências sobre o tratamento odioso que lhe deram em Berlim, para onde o arrastaram assim que foi preso. Os castigos que aguentou por lá, quando ainda sofria um bocado por conta dos ferimentos na cabeça, recebidos por ocasião de sua dramática prisão em Nantes. Eles o puseram numa cela sem colchão, sem mesa nem tamborete, e seu balde não tinha tampa. Só quem já esteve preso sabe o que significa um balde sem tampa numa pequena cela mal arejada. Ele ficou cerca de um mês em Berlim antes que o trouxessem de volta a Paris. No trem para cá, foi instalado na primeira classe, o oficial que o acompanhava lhe ofereceu charutos... Depois, sem motivo algum, ao chegar em Cherche-Midi [prisão na qual a autora ficou detida de abril a agosto de 1941, nota de LdeM] , ficou um mês trancado na solitária antes de ser acomodado em definitivo na cela da qual, para nossa felicidade, conversou tanto conosco.” (pp. 82-83)




Prisão de Fresnes, 17 de fevereiro de 1942

Enfim, o veredicto!

O presidente está pálido, nunca vi um homem tão pálido: ele disse que seu dever de alemão era duro. Hoje, percebe-se nitidamente que suas palavras eram sinceras. Ele sofre por ter que pronunciar uma sentença desse tipo. Estima e admira os homens que vai condenar à morte.

Estamos todos acomodados como no dia das alegações da promotoria. Ele faz sinal para que os liberados deixem a sala. Em seguida, a história é conosco, aqueles que terão uma pena a cumprir: Müller, Jean-Paul Carrier e eu. Depois será a vez dos condenados à morte: Yvonne Oddon, Sylvette Leleu, Alice Simonnet e os sete homens. Jean-Paul Carrier se safa com três anos de reclusão Müller e eu, com cinco. (*)

[…]

O presidente ordena que os três futuros deportados se retirem. Me chama de volta, porém, para me autorizar a aguardar na salinha contígua, a fim de poder, dali a poucos instantes, dizer adeus pela última vez a meus amigos. Pronuncia 'pela última vez', como se acreditasse nisso, mas eu – nós – não acreditamos!”

[...]


(*)Jean-Paul Carrier conseguiu fugir da prisão de Clairvaux e, depois de sete meses em cárceres da França, chegou à África do sul; Mǘller, coitado, foi morto na Alemanha durante um bombardeio aéreo.





Capítulo VII – Os trabalhos forçados

[Prisão de Anrath, março 1942]

Nesta época [início de 1942], os deportados políticos não eram conduzidos diretamente aos campos de extermínio, mas automaticamente enviados para as prisões alemães de trabalhos forçados com os presos comuns, o que explica que a minha experiência, igual à de todos os deportados no início de 1942, seja muito diversa da dos deportados que chegaram à Alemanha depois de nós. O destino destes, coitados, com certeza foi muito pior do que o nosso!” p. 103


[depois de Anrath, prisioneiras conduzidas para Klefeld, “cidade industrial a alguns quilômetros de Anrath. Lá trabalharemos numa fábrica.” p. 107]


Klefeld, 11 de abril de 1942

Por volta de uma da tarde, recebemos uma ordem para nos preparar. Agrupadas em trios no pátio, lá vamos nós, escoltadas por duas guardiãs e dois cavalheiros que, ao que tudo indica, são guardas da fábrica. Nos obrigam a marchar no meio da rua, como soldados. Não consigo falar com Denise; os alojamentos não devem se misturar... Passamos diante de uma loja de roupas femininas, há uma vitrine enorme, me vejo nela. Esta camponesa velha que claudica, calçada com coturnos ridículos e penteada de forma grotesca sou eu... Preciso erguer a mão direita para me convencer de que a imagem que o espelho me devolve é realmente minha … Sim, a velha sou eu, pois a velha no espelho da loja ergue a mão direita... Como eu … Minha aparência é igual à de todas estas mulheres, tão feia e tão miserável quanto a delas. É horrível ser humilhada, andar na rua sob a luz dos sol desse jeito ridículo! As outras mulheres na calçada – as ladies – ostentam belos vestidos, já meio primaveris.... Essa espécie de tristeza que me fecha a garganta é pueril. Não há por que me envergonhar de desfilar assim submissa pelas ruas de Krefeld... Sim, é claro, debato comigo mesma, mas se ao menos tivéssemos, Kate, Denise e eu, as cores do nosso país, um broche que fosse, um tantinho que nos diferenciasse das ladras, das assassinas alemãs com as quais nos confundem... O homem (e a mulher) é realmente um ser medíocre, uma vez que para acalmá-lo – para poupá-lo de uma humilhação aguda – bastam simplesmente três pedacinhos de fita grudados com linha!

[…]

Finalmente, a fábrica. É imensa, cercada de vilas operárias e de outras fábricas. Ao longe, uma grande ponte suspensa. As placas da estrada nos informam que se trata da Adolf-Hitler-Rheinbrücke... A fábrica de tijolos vermelhos engloba vários prédios avantajados, todos muito modernos e esbanjando harmonia. O primeiro pátio é ornado de flores e grama. O prédio principal possui uma torre enorme que me faz lembrar, em escala muito maior, a torre do Palácio Vecchio de Florença... Esqueço a minha aparência física tamanha a felicidade de contemplar algo novo, algo novo que me agrada, porque tudo aqui parece repleto de ordem e harmonia. O pátio em torno do qual as construções se agrupam é sulcado de trilhos – vários vagões de estrada de ferro se encontram ali... Um deles vem da França... 'Homens: 40; cavalos em pé: 8.' Nem homens nem cavalos, mas toneladas das nossas magníficas batatas....São tantas que os alemães andam sobre elas... Por que se incomodar com isso, a troco de quê? Minha mudança de humor é contido quando vejo ao longe, atrás da fábrica, duas grandes estufas... A fábrica tem suas próprias flores... Acho que na França não existe nada semelhante. Mas deveria existir. Todas essas flores dão um aspecto tão alegre, tão vivaz, tão humano a construções racionais e austeras. A fábrica se chama 'Phrix. Rheinische Kunstseide Aktiengeselschaft', mas Kate vai logo dizendo que o nome pelo qual conhecem é mais curto: 'Rheika'.” pp. 110-112




Krefeld, maio de 1942

Só se fala nos russos, seremos substituídos por russos! Serão mulheres ou homens russos? O que será feito de nós? As alemãs inventam histórias inacreditáveis em que o único tema é a libertação. Os russos vão 'soltar' as prisioneiras alemãs. Enquanto isso, os dias passam e não se vê mudança alguma.

À noite, quando saímos da Rheika, cruzamos muitas vezes com o kommando que vai nos render. No mio de todas as prisioneiras, uma chama a minha atenção – uma francesa cujos olhos cintilam. Ela me grita as 'notícias'. Descubro que a nossa compatriota é de Tourcoing. Desconheço tudo a seu respeito, salvo que tem um dinamismo maravilhoso e quer compartilhar a alegria, a alegria de sua natureza feliz, com o mundo inteiro. Um dia é Pétain que partiu para a Argélia, no outro, a Itália que está prestes a entregar as armas e, finalmente, Sikorski que falou de Varsóvia. A prova? Não há mais operários poloneses na fábrica... Voltaram todos para casa. Para o desembarque anglo-americano... basta esperar por esses dias felizes e isso ocorrerá muito em breve. Já não creio nessas notícias, mas meu moral é muito bom. Sei que a guerra não pode durar muito mais tempo e que o hitlerismo será destituído por dentro e por fora. O dia em que os russos atravessarem a fronteira, a revolução eclodirá na Alemanha... Já faz anos que nos dizem que tudo está pronto, armas escondidas, planos elaborados, palavras de ordem que aguardam apenas um sinal para serem enviadas aos quatro cantos do país. Sei disso tudo, e ainda assim as 'notícias' da senhora de Tourcoing me dão prazer. Adoro ver o brilho de seus olhos negros quando ela chega e grita 'Vai tudo muito bem', acentuando misteriosamente o 'muito'...” pp. 118-119


...

Krefeld, maio de 1942


Agora sei direitinho 'bobinar' a seda. Estudo a arte e as formas da sabotagem.

Devemos dar nós chatos, nós de tecelão. Os nós comuns, ao que parece, fazem as máquinas de tecer pularem. Entendi! O interior dos meus carretéis é recheado de nós gordos que causarão problemas, mas o exterior se apresenta perfeito, é o essencial... Ninguém sabe, ninguém viu... Estou bem mais animada agora que sei que nenhum dos meus carretéis presta... Nenhum gerará lucros para o Grande Reich!

As russas chegaram. São ucranianas, todas mocinhas, meninas quase. Naturalmente estamos proibidas de nos aproximar delas, de lhes falar, até mesmo de olhá-las... Apesar de tudo, descobrimos que foram deportadas à força, obrigadas a assinar um contrato de trabalho numa fábrica de … chocolate. E cá estão. Em sua maioria, são lindas. Todas usam o fouland nacional ou o lenço branco em volta da cabeça. Têm a expressão amedrontada de pequenos pardais. As alemãs se empurram para vê-las. Muitas, entre as recém-chegadas, ostentam pequenas cruzes penduradas no pescoço, o que causa enorme estranheza nas alemãs, pois as faz rever as idiotices que lhes contaram sobre a vida na União Soviética.


As russas têm uma etiqueta costurada na roupa, um pequeno retângulo de tecido azul com a palavra 'Ost' em branco. Dá para sentir que se orgulham dessa distinção, dessa pequena distinção que desejo (mentalmente, claro) desde a minha chegada à prisão. As polonesas parecem envergonhadas, ao contrário, do losango amarelo que as obrigam a usar, losango sobre o qual se destaca um 'P' azul escuro. Todos os estratagemas são válidos para livrá-las da marca de sua origem. Por que terão vergonha de ser de onde são? Enquanto enrolo a seda, admiro essas mocinhas da Ucrânia ligadas a seu país, a suas famílias... São tão bonitas, tão puras, tão ingênuas, com suas bijuterias de vintéis e seus pobres vestidinhos. Foram elas que vi em 1939 nos arredores de Kiev, cantando no 'colcoz' (*) a alegria de viver. E agora são escravas...” pp. 119-120


(*)Tipo de propriedade rural coletiva na ex-União Soviética em que os camponeses formavam uma cooperativa e repassavam ao Estado uma parte fixa da produção. (N.T.)




Krefeld, maio de 1942

Ontem à noite houve sinfonia! Um ataque aéreo formidável sobre Colônia [Köln]. Os aviões ingleses ou americanos (não sabemos quais) sobrevoaram Krefeld. Contemplo, ajoelhada na cama, junto à janela, o magnífico espetáculo dos holofotes... Os fachos luminosos se entrecruzam no céu muito claro. De repente, um avião fica aprisionado na luz dos holofotes... Os obuses da Defesa Antiaérea espocam à sua volta. Como uma borboleta enlouquecida, uma borboleta muito alva, o avião faz uma manobra súbita, sobe, desce, evita os obuses e, finalmente, oh! finalmente, escapa do raio revelador. Emito um grito, numa voz selvagem: 'Eles não o pegaram, os canalhas!'

As mulheres ficam muito nervosas com o barulho da Defesa Antiaérea. Além disso, sabem que estamos ao lado da estação de Krefeld – o local não foi propriamente bem escolhido. Não existe abrigo. As guardiãs foram se esconder só Deus sabe onde depois de nos trancafiarem. Se pegarmos fogo, tudo bem. As janelas têm grades... Tento deitar na minha cama, mas alguém chegou primeiro. É a inefável Baker, que me toma nos braços e me chama de sua 'pombinha de açúcar'. A emoção deixou-a terna demais. Com um safanão. Mando que vá procurar noutro lugar aquilo de que precisa esta noite. Finalmente só, pego no sono ouvindo o barulho do intenso bombardeio de Colônia e me pergunto com tristeza quantos seres humanos serão abatidos hoje... No entanto, este massacre tem que acontecer...” pp. 120-121






Krefeld, julho de 1942


Os aviões não vêm apenas à noite. Hoje, foram seis alarmes em pleno dia. Um deles permanece um bom tempo acima de nós. Faz um oito lá no céu... Oito? O que quer dizer este oito? Agosto? O oitavo mês? Haverá algo proveitoso para agosto? Seja o que for, os civis belgas nos garantem que o desembarque prossegue pouco a pouco por todo lado e que os ingleses se aproximam de Amiens... Nenhuma confirmação no lado alemão, e nossas guardiãs angelicais não se mostram assustadas. Se essas notícias fossem verídicas, continuariam tão calmas?

Há um anúncio de grandes mudanças: as russas estão a ponto de render um bocado no ofício de desembaraçar os fios; há prisioneiras em demasia com elas. Além disso, as matérias-primas parecem diminuir, o que nos deixa encantadas. Corremos o risco, assim, de acabar desempregadas. Por outro lado, muitos dos operários livres, belgas e holandeses, querem distância da tecelagem, onde o trabalho é duríssimo. Logo irão nos forçar a substituir esses homens que fogem de um trabalho tão extenuante.” pp. 131-132




Krefeld, 15 de janeiro de 1943

Sem dúvida há mudanças 'lá fora', pois o regulamento, da noite para o dia, se tornou muito mais rígido. Os guardas da fábrica agora andam armados de fuzil. Meu pobre Erb [um dos guardas alemães] tem cara de não saber o que fazer com ele. Um SS acompanha os guardas e vem nos buscar diariamente para nos escoltar ao trabalho. Ele me dá muita pena, pois se parece com Louis Jouvet. É triste vê-lo enfiado neste uniforme! O SS conta as mulheres na saída de casa. A fim de não se confundir, ele nos belisca o braço, de passagem, de preferência machucando a carne.

No meio da sala de máquinas, acabam de construir uma guarita de concreto armado, uma espécie de torre fortificada com seteiras da qual é possível controlar a sala toda com uma simples metralhadora. Uma construção similar também surgiu no pátio e em todas as dependências da fábrica. Estou muito feliz, pois estes sinais são precursores de revolta. Correm rumores de motins...

… …

Maria B., jovem comunista alemã de um outro turno, acaba de ser enviada para Anrath, para a solitária. Vai se divertir um bocado! Está sendo punida por ter dado a boa notícia do cerco às tropas alemãs na Rússia. Onde terá ocorrido esse cerco? Ninguém sabe ao certo, mas todo mundo fala disso. A alegria me leva a dançar, corremos de uma máquina a outra; umas ouviram dizer que se trata de dez divisões, outras, de cem, mas como não sabemos em que consiste uma divisão, continuamos mal informadas. De fonte alemã, fala-se à boca pequena do começo do fim. Uma vez mais, dou pirueta como uma doida, apesar da dor sempre lancinante que sinto no pé. Houben [o contramestre-chefe] me vê, chama um de seus ajudantes, os dois me observam enquanto imito uma bailarina. Henriette manda, aos gritos, que eu sossegue. Tarde demais! Eles me viram. Tanto pior!” pp. 160-161


...




Krefeld-Anrath (25 de agosto … 19 de outubro de 1943)


Na 'Rheika', trabalhávamos numa fábrica estatizada. Para nós, detentas políticas, a situação era até certo ponto compreensível. Havíamos causado problemas à Alemanha hitlerista, e a Alemanha hitlerista se vingara de nós fazendo com que trabalhássemos para ela até a morte nos levar. Agora, porém, tudo mudou. A Alemanha hitlerista nos alugou (bem barato, sem dúvida) a um feitor de escravos que ficará rico com o o nosso suor. Somos sessenta, francesas, belgas e holandesas, propriedade de Herr Joseph Scheuring, que, embora alemão, membro do Partido e, obrigatoriamente, ariano puro, tem a aparência de um sírio que enriqueceu graças ao tráfico de escravas brancas. Tem a pele morena, cabelos negros e crespos, usa chapéu-panamá, jaquetão bege claro, sapatos brancos arrematados por biqueiras amarelas, anelão de ouro ornado de lápis-lazúli e, naturalmente, gravata vermelha. É bonito demais para ser de verdade. É uma ousadia descrevê-lo, por medo de que nos rotulem de exageradas. Ninguém sabe de que buraco saiu este crápula extraordinário, intimamente ligado, ao que parece, ao diretor da prisão de Anrath. Diariamente, depois das cinco da tarde, já está praticamente bêbado. Sua fábrica foi em boa parte destruída pelo último bombardeio. Cabe a nós derrubar os muros claudicantes e limpar os tijolos para torná-los passíveis de serem utilizados novamente. Cabe a nós, às sessenta mulheres, a honra de construir uma nova fábrica para que Herr Scheuring enriqueça. Seu quadro de funcionários abrange, além de nós, Adolphe e Georges, dois prisioneiros de guerra francesas, e dois condenados alemães a trabalhos forçados. Naturalmente os homens estão proibidos de nos ajudar, e o trabalho mais duro fica a nosso cargo. Carregamos as vigas de ferro, misturamos o cimento e a argamassa, descarregamos os caminhões de material de construção, bem como as mercadorias. Os homens levantam os andaimes e as paredes. Algumas mulheres sentem vertigem quando têm que subir no andaime, com o pé nu dentro dos tamancos. […]

A oficina não existe mais, nós a estamos reconstruindo agora. Apesar de tudo, o feitor de escravos me chama várias vezes ao dia para executar trabalhos pesados. O destino das mulheres que não se ocupam da costura dos sacos nem da armazenagem é absolutamente inacreditável. Fazem terraplanagem, cavam as valas onde entrarão os cabos de alta tensão e os encaixam ali, fabricam o cimento e a argamassa e transportam tudo isso para o canteiro de obras e dele para os andaimes. […] O dia inteiro, Scheuring dirige os trabalhos. Além da nossa guardiã, somos vigiados pelos dois filhos de Scheuring, que têm, respectivamente, 11 e 12 anos. Eles executam à perfeição sua tarefa de espiõezinhos nazistas e não tiram os olhos de nós. A menina é pior que o menino. Por qualquer coisinha, o patrão nos manda para o confinamento disciplinar, pois, para o cúmulo da felicidade, estamos alojadas novamente em Anrath. A prisão não mudou desde que lá cheguei em abril de 1942. no entanto, há uma novidade: um aviso impresso em belíssima caligrafia, acima da porta de entrada. O texto integral em francês é o seguinte:

'No caso de bombardeio aéreo, todos devem se manter absolutamente calmos. Quem fizer barulho ou tentativa de fuga (sic) será fuzilado.

Assinado: Dr. Cobrick, diretor da prisão masculina e da Maison de Force feminina.'

O diretor da nossa prisão se gaba de conhecer muito bem a língua francesa. Este aviso foi postado na entrada em seguida a um terrível surto de pânico na prisão. Todas as infelizes prisioneiras estavam trancadas à chave lá dentro. Durante um ataque aéreo intensíssimo, uma bomba caiu bem pertinho e, com o incêndio se alastrando pelos prédios vizinhos à prisão, as mulheres desesperadas tentaram arrombar as portas das próprias celas, dando origem a este pitoresco apelo à calma.” pp. 183-185



fonte: HUMBERT, Agnés. Resistência. (Résistance) trad. Regina Lyra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.



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