Resistência
Francesa
Deportações
Vários
relatos sobre a Resistência Francesa etão disponíveis em várias
mídias – livros, vídeos, documentários -geralmente com o foco no
panorama histórico, da perspectiva da História, mas aqui temos um
relato pessoal, na forma de um diário, tal qual testemunha um Primo
Levi (1919-1987), sobre as atrocidades nazistas. Uma voz resistente,
mulher que atuou na luta antifascista na França ocupada, que lutou
com ânimo nacionalista contra as forças de opressão que não
hesitaram em torturar, matar, deportar, condenar à trabalhos
forçados.
Aqui
apresentaremos alguns trechos da obra Resistência (publicada
primeiramente em 1946) da francesa Agnés Humbert (1894-1963), que
atuou em imprensa clandestina contra os nazistas, foi presa, sofreu
um julgamento ao estilo nazi, e foi deportada para a Alemanha.
Vejamos alguns trechos sobre a ocupação da França [em 1940], sobre
as prisões [em 1941], sobre a deportação [em 1942] e sobre o
bombardeio do III Reich (que, entre 1943 e 1945, danificou a
infraestrutura e atingiu a população civil), além dos
prisioneiros. (LdeM)
“Paris,
final de novembro de 1940
O
comitê de redação do nosso jornal está formado. Marcel Abraham,
Jean Cassou, Claude Aveline. Vildé diz que podemos dispor de três
páginas. A primeira será redigida por 'aqueles senhores', os
cavalheiros misteriosos que fornecem o papel e garantem o serviço de
impressão. O nosso grupo de dez ficará com quatrocentos e
quinhentos exemplares. Cabe a nós providenciar uma distribuição
meticulosa, sobretudo a pessoas capazes de reproduzi-los. O nome do
pato? Vildé sugeriu Libération, mas a ideia nos pareceu um
pouco prematura. Decidiu-se (quem? Onde? Ignoramos) que será
Résistance. Discutimos tendências políticas. De Gaulle
contará com toda a nossa simpatia respeitosa... Devemos ser
prudentes e conhecer seu ideal político; ser circunspectos durante
algum tempo ao falar desse velho imbecil, o marechal. Todos sabemos
quanto vale este Franco em miniatura. No entanto, muitos ainda não
abriram os olhos. O futuro se encarregará de esclarecê-los. Mas
correremos o risco de prejudicar a nossa causa se os alertarmos de
maneira muito brusca. Estamos acumulando, a partir de hoje,
documentos sobre o 'velho'. Trechos das Mémoires de Poincaré,
Lloyd George e Clemenceau nos serão úteis quando chegar a hora. Nós
o ajudaremos a mergulhar na lama onde ele já chafurda... Oh!
Montoire! (*)
Devemos
redigir o jornal na casa dos Martin-Chauffier, onde reside Claude
Aveline no momento. No final do dia, Vildé me disse que Lewitsky
virá pegar os 'papeis'. Lewitsky? Isso mesmo, responde Vildé, ele
está conosco desde o primeiro dia. Fico contente em saber. Eu o
conheço desde que fui trabalhar no palácio de Chaillot. Era sempre
a ele que me dirigia quando precisava de alguma informação quanto
ao Museu do Homem. Admiro tanto a sua cortesia, aquela cortesia,
aquela cortesia inteligente dos russos... Fico felicíssima de saber
que ele é um dos nossos!” (p. 28)
(*)Em
Montoire-sur-le -Loir se deu o encontro entre Pétain e Hitler para
definir a política de colaboração franco-alemã. (N.T.)
…
“Prisão
de La Santé, novembro de 1941
Já
faz quatro meses que estou na Santé. Os dias se sucedem, silenciosos
e quase idênticos. Algumas grandes alegrias, como a entrada dos
Estados Unidos na guerra e notícias bem melhores do front
russo. Pude ver Yvonne Oddon no pátio. Ela me disse que nosso
processo vem sendo adiado de semana a semana. Tempo a ganhar para os
homens, que, coitados, não se darão tão bem quanto nós.
Ouvi
gritarem no pátio que Jean-Pierre foi executado em agosto. Não
posso acreditar nisso. É estranho como a minha mente se recusa a
aceitar as más notícias! Elas me parecem inacreditáveis. No
entanto... Será possível que d'Estienne d'Orves não mais exista?
Que todo o seu heroísmo tranquilo se encerre aqui? Penso nas suas
confidências sobre o tratamento odioso que lhe deram em Berlim, para
onde o arrastaram assim que foi preso. Os castigos que aguentou por
lá, quando ainda sofria um bocado por conta dos ferimentos na
cabeça, recebidos por ocasião de sua dramática prisão em Nantes.
Eles o puseram numa cela sem colchão, sem mesa nem tamborete, e seu
balde não tinha tampa. Só quem já esteve preso sabe o que
significa um balde sem tampa numa pequena cela mal arejada. Ele ficou
cerca de um mês em Berlim antes que o trouxessem de volta a Paris.
No trem para cá, foi instalado na primeira classe, o oficial que o
acompanhava lhe ofereceu charutos... Depois, sem motivo algum, ao
chegar em Cherche-Midi [prisão na qual a autora ficou detida de
abril a agosto de 1941, nota de LdeM] , ficou um mês trancado na
solitária antes de ser acomodado em definitivo na cela da qual, para
nossa felicidade, conversou tanto conosco.” (pp. 82-83)
…
“Prisão
de Fresnes, 17 de fevereiro de 1942
Enfim,
o veredicto!
O
presidente está pálido, nunca vi um homem tão pálido: ele disse
que seu dever de alemão era duro. Hoje, percebe-se nitidamente que
suas palavras eram sinceras. Ele sofre por ter que pronunciar uma
sentença desse tipo. Estima e admira os homens que vai condenar à
morte.
Estamos
todos acomodados como no dia das alegações da promotoria. Ele faz
sinal para que os liberados deixem a sala. Em seguida, a história é
conosco, aqueles que terão uma pena a cumprir: Müller, Jean-Paul
Carrier e eu. Depois será a vez dos condenados à morte: Yvonne
Oddon, Sylvette Leleu, Alice Simonnet e os sete homens. Jean-Paul
Carrier se safa com três anos de reclusão Müller e eu, com cinco.
(*)
[…]
O
presidente ordena que os três futuros deportados se retirem. Me
chama de volta, porém, para me autorizar a aguardar na salinha
contígua, a fim de poder, dali a poucos instantes, dizer adeus pela
última vez a meus amigos. Pronuncia 'pela última vez', como se
acreditasse nisso, mas eu – nós – não acreditamos!”
[...]
(*)Jean-Paul
Carrier conseguiu fugir da prisão de Clairvaux e, depois de sete
meses em cárceres da França, chegou à África do sul; Mǘller,
coitado, foi morto na Alemanha durante um bombardeio aéreo.
…
Capítulo
VII – Os trabalhos forçados
[Prisão
de Anrath, março 1942]
“Nesta
época [início de 1942], os deportados políticos não eram
conduzidos diretamente aos campos de extermínio, mas automaticamente
enviados para as prisões alemães de trabalhos forçados com os
presos comuns, o que explica que a minha experiência, igual à de
todos os deportados no início de 1942, seja muito diversa da dos
deportados que chegaram à Alemanha depois de nós. O destino destes,
coitados, com certeza foi muito pior do que o nosso!” p. 103
[depois
de Anrath, prisioneiras conduzidas para Klefeld, “cidade
industrial a alguns quilômetros de Anrath. Lá trabalharemos numa
fábrica.” p. 107]
“Klefeld,
11 de abril de 1942
Por
volta de uma da tarde, recebemos uma ordem para nos preparar.
Agrupadas em trios no pátio, lá vamos nós, escoltadas por duas
guardiãs e dois cavalheiros que, ao que tudo indica, são guardas da
fábrica. Nos obrigam a marchar no meio da rua, como soldados. Não
consigo falar com Denise; os alojamentos não devem se misturar...
Passamos diante de uma loja de roupas femininas, há uma vitrine
enorme, me vejo nela. Esta camponesa velha que claudica, calçada com
coturnos ridículos e penteada de forma grotesca sou eu... Preciso
erguer a mão direita para me convencer de que a imagem que o espelho
me devolve é realmente minha … Sim, a velha sou eu, pois a velha
no espelho da loja ergue a mão direita... Como eu … Minha
aparência é igual à de todas estas mulheres, tão feia e tão
miserável quanto a delas. É horrível ser humilhada, andar na rua
sob a luz dos sol desse jeito ridículo! As outras mulheres na
calçada – as ladies – ostentam belos vestidos, já meio
primaveris.... Essa espécie de tristeza que me fecha a garganta é
pueril. Não há por que me envergonhar de desfilar assim submissa
pelas ruas de Krefeld... Sim, é claro, debato comigo mesma, mas se
ao menos tivéssemos, Kate, Denise e eu, as cores do nosso país, um
broche que fosse, um tantinho que nos diferenciasse das ladras, das
assassinas alemãs com as quais nos confundem... O homem (e a mulher)
é realmente um ser medíocre, uma vez que para acalmá-lo – para
poupá-lo de uma humilhação aguda – bastam simplesmente três
pedacinhos de fita grudados com linha!
[…]
Finalmente,
a fábrica. É imensa, cercada de vilas operárias e de outras
fábricas. Ao longe, uma grande ponte suspensa. As placas da estrada
nos informam que se trata da Adolf-Hitler-Rheinbrücke... A fábrica
de tijolos vermelhos engloba vários prédios avantajados, todos
muito modernos e esbanjando harmonia. O primeiro pátio é ornado de
flores e grama. O prédio principal possui uma torre enorme que me
faz lembrar, em escala muito maior, a torre do Palácio Vecchio de
Florença... Esqueço a minha aparência física tamanha a felicidade
de contemplar algo novo, algo novo que me agrada, porque tudo aqui
parece repleto de ordem e harmonia. O pátio em torno do qual as
construções se agrupam é sulcado de trilhos – vários vagões de
estrada de ferro se encontram ali... Um deles vem da França...
'Homens: 40; cavalos em pé: 8.' Nem homens nem cavalos, mas
toneladas das nossas magníficas batatas....São tantas que os
alemães andam sobre elas... Por que se incomodar com isso, a troco
de quê? Minha mudança de humor é contido quando vejo ao longe,
atrás da fábrica, duas grandes estufas... A fábrica tem suas
próprias flores... Acho que na França não existe nada semelhante.
Mas deveria existir. Todas essas flores dão um aspecto tão alegre,
tão vivaz, tão humano a construções racionais e austeras. A
fábrica se chama 'Phrix. Rheinische Kunstseide Aktiengeselschaft',
mas Kate vai logo dizendo que o nome pelo qual conhecem é mais
curto: 'Rheika'.” pp. 110-112
…
“Krefeld,
maio de 1942
Só
se fala nos russos, seremos substituídos por russos! Serão mulheres
ou homens russos? O que será feito de nós? As alemãs inventam
histórias inacreditáveis em que o único tema é a libertação. Os
russos vão 'soltar' as prisioneiras alemãs. Enquanto isso, os dias
passam e não se vê mudança alguma.
À
noite, quando saímos da Rheika, cruzamos muitas vezes com o kommando
que vai nos render. No mio de todas as prisioneiras, uma chama a
minha atenção – uma francesa cujos olhos cintilam. Ela me grita
as 'notícias'. Descubro que a nossa compatriota é de Tourcoing.
Desconheço tudo a seu respeito, salvo que tem um dinamismo
maravilhoso e quer compartilhar a alegria, a alegria de sua natureza
feliz, com o mundo inteiro. Um dia é Pétain que partiu para a
Argélia, no outro, a Itália que está prestes a entregar as armas
e, finalmente, Sikorski que falou de Varsóvia. A prova? Não há
mais operários poloneses na fábrica... Voltaram todos para casa.
Para o desembarque anglo-americano... basta esperar por esses dias
felizes e isso ocorrerá muito em breve. Já não creio nessas
notícias, mas meu moral é muito bom. Sei que a guerra não pode
durar muito mais tempo e que o hitlerismo será destituído por
dentro e por fora. O dia em que os russos atravessarem a fronteira, a
revolução eclodirá na Alemanha... Já faz anos que nos dizem que
tudo está pronto, armas escondidas, planos elaborados, palavras de
ordem que aguardam apenas um sinal para serem enviadas aos quatro
cantos do país. Sei disso tudo, e ainda assim as 'notícias' da
senhora de Tourcoing me dão prazer. Adoro ver o brilho de seus olhos
negros quando ela chega e grita 'Vai tudo muito bem', acentuando
misteriosamente o 'muito'...” pp. 118-119
...
“Krefeld,
maio de 1942
Agora
sei direitinho 'bobinar' a seda. Estudo a arte e as formas da
sabotagem.
Devemos
dar nós chatos, nós de tecelão. Os nós comuns, ao que parece,
fazem as máquinas de tecer pularem. Entendi! O interior dos meus
carretéis é recheado de nós gordos que causarão problemas, mas o
exterior se apresenta perfeito, é o essencial... Ninguém sabe,
ninguém viu... Estou bem mais animada agora que sei que nenhum dos
meus carretéis presta... Nenhum gerará lucros para o Grande Reich!
As
russas chegaram. São ucranianas, todas mocinhas, meninas quase.
Naturalmente estamos proibidas de nos aproximar delas, de lhes falar,
até mesmo de olhá-las... Apesar de tudo, descobrimos que foram
deportadas à força, obrigadas a assinar um contrato de trabalho
numa fábrica de … chocolate. E cá estão. Em sua maioria, são
lindas. Todas usam o fouland nacional ou o lenço branco em
volta da cabeça. Têm a expressão amedrontada de pequenos pardais.
As alemãs se empurram para vê-las. Muitas, entre as recém-chegadas,
ostentam pequenas cruzes penduradas no pescoço, o que causa enorme
estranheza nas alemãs, pois as faz rever as idiotices que lhes
contaram sobre a vida na União Soviética.
As
russas têm uma etiqueta costurada na roupa, um pequeno retângulo de
tecido azul com a palavra 'Ost' em branco. Dá para sentir que se
orgulham dessa distinção, dessa pequena distinção que desejo
(mentalmente, claro) desde a minha chegada à prisão. As polonesas
parecem envergonhadas, ao contrário, do losango amarelo que as
obrigam a usar, losango sobre o qual se destaca um 'P' azul escuro.
Todos os estratagemas são válidos para livrá-las da marca de sua
origem. Por que terão vergonha de ser de onde são? Enquanto enrolo
a seda, admiro essas mocinhas da Ucrânia ligadas a seu país, a suas
famílias... São tão bonitas, tão puras, tão ingênuas, com suas
bijuterias de vintéis e seus pobres vestidinhos. Foram elas que vi
em 1939 nos arredores de Kiev, cantando no 'colcoz' (*) a alegria de
viver. E agora são escravas...” pp. 119-120
(*)Tipo
de propriedade rural coletiva na ex-União Soviética em que os
camponeses formavam uma cooperativa e repassavam ao Estado uma parte
fixa da produção. (N.T.)
“Krefeld,
maio de 1942
Ontem
à noite houve sinfonia! Um ataque aéreo formidável sobre Colônia
[Köln]. Os aviões ingleses ou americanos (não sabemos quais)
sobrevoaram Krefeld. Contemplo, ajoelhada na cama, junto à janela, o
magnífico espetáculo dos holofotes... Os fachos luminosos se
entrecruzam no céu muito claro. De repente, um avião fica
aprisionado na luz dos holofotes... Os obuses da Defesa Antiaérea
espocam à sua volta. Como uma borboleta enlouquecida, uma borboleta
muito alva, o avião faz uma manobra súbita, sobe, desce, evita os
obuses e, finalmente, oh! finalmente, escapa do raio revelador. Emito
um grito, numa voz selvagem: 'Eles não o pegaram, os canalhas!'
As
mulheres ficam muito nervosas com o barulho da Defesa Antiaérea.
Além disso, sabem que estamos ao lado da estação de Krefeld – o
local não foi propriamente bem escolhido. Não existe abrigo. As
guardiãs foram se esconder só Deus sabe onde depois de nos
trancafiarem. Se pegarmos fogo, tudo bem. As janelas têm grades...
Tento deitar na minha cama, mas alguém chegou primeiro. É a
inefável Baker, que me toma nos braços e me chama de sua 'pombinha
de açúcar'. A emoção deixou-a terna demais. Com um safanão.
Mando que vá procurar noutro lugar aquilo de que precisa esta noite.
Finalmente só, pego no sono ouvindo o barulho do intenso bombardeio
de Colônia e me pergunto com tristeza quantos seres humanos serão
abatidos hoje... No entanto, este massacre tem que acontecer...”
pp. 120-121
…
“Krefeld,
julho de 1942
Os
aviões não vêm apenas à noite. Hoje, foram seis alarmes em pleno
dia. Um deles permanece um bom tempo acima de nós. Faz um oito lá
no céu... Oito? O que quer dizer este oito? Agosto? O oitavo mês?
Haverá algo proveitoso para agosto? Seja o que for, os civis belgas
nos garantem que o desembarque prossegue pouco a pouco por todo lado
e que os ingleses se aproximam de Amiens... Nenhuma confirmação no
lado alemão, e nossas guardiãs angelicais não se mostram
assustadas. Se essas notícias fossem verídicas, continuariam tão
calmas?
Há
um anúncio de grandes mudanças: as russas estão a ponto de render
um bocado no ofício de desembaraçar os fios; há prisioneiras em
demasia com elas. Além disso, as matérias-primas parecem diminuir,
o que nos deixa encantadas. Corremos o risco, assim, de acabar
desempregadas. Por outro lado, muitos dos operários livres, belgas e
holandeses, querem distância da tecelagem, onde o trabalho é
duríssimo. Logo irão nos forçar a substituir esses homens que
fogem de um trabalho tão extenuante.” pp. 131-132
…
“Krefeld,
15 de janeiro de 1943
Sem
dúvida há mudanças 'lá fora', pois o regulamento, da noite para o
dia, se tornou muito mais rígido. Os guardas da fábrica agora andam
armados de fuzil. Meu pobre Erb [um dos guardas alemães] tem cara de
não saber o que fazer com ele. Um SS acompanha os guardas e vem nos
buscar diariamente para nos escoltar ao trabalho. Ele me dá muita
pena, pois se parece com Louis Jouvet. É triste vê-lo enfiado neste
uniforme! O SS conta as mulheres na saída de casa. A fim de não se
confundir, ele nos belisca o braço, de passagem, de preferência
machucando a carne.
No
meio da sala de máquinas, acabam de construir uma guarita de
concreto armado, uma espécie de torre fortificada com seteiras da
qual é possível controlar a sala toda com uma simples metralhadora.
Uma construção similar também surgiu no pátio e em todas as
dependências da fábrica. Estou muito feliz, pois estes sinais são
precursores de revolta. Correm rumores de motins...
… …
Maria
B., jovem comunista alemã de um outro turno, acaba de ser enviada
para Anrath, para a solitária. Vai se divertir um bocado! Está
sendo punida por ter dado a boa notícia do cerco às tropas alemãs
na Rússia. Onde terá ocorrido esse cerco? Ninguém sabe ao certo,
mas todo mundo fala disso. A alegria me leva a dançar, corremos de
uma máquina a outra; umas ouviram dizer que se trata de dez
divisões, outras, de cem, mas como não sabemos em que consiste uma
divisão, continuamos mal informadas. De fonte alemã, fala-se à
boca pequena do começo do fim. Uma vez mais, dou pirueta como uma
doida, apesar da dor sempre lancinante que sinto no pé. Houben [o
contramestre-chefe] me vê, chama um de seus ajudantes, os dois me
observam enquanto imito uma bailarina. Henriette manda, aos gritos,
que eu sossegue. Tarde demais! Eles me viram. Tanto pior!” pp.
160-161
...
“Krefeld-Anrath
(25 de agosto … 19 de outubro de 1943)
Na
'Rheika', trabalhávamos numa fábrica estatizada. Para nós,
detentas políticas, a situação era até certo ponto compreensível.
Havíamos causado problemas à Alemanha hitlerista, e a Alemanha
hitlerista se vingara de nós fazendo com que trabalhássemos para
ela até a morte nos levar. Agora, porém, tudo mudou. A Alemanha
hitlerista nos alugou (bem barato, sem dúvida) a um feitor de
escravos que ficará rico com o o nosso suor. Somos sessenta,
francesas, belgas e holandesas, propriedade de Herr Joseph Scheuring,
que, embora alemão, membro do Partido e, obrigatoriamente, ariano
puro, tem a aparência de um sírio que enriqueceu graças ao tráfico
de escravas brancas. Tem a pele morena, cabelos negros e crespos, usa
chapéu-panamá, jaquetão bege claro, sapatos brancos arrematados
por biqueiras amarelas, anelão de ouro ornado de lápis-lazúli e,
naturalmente, gravata vermelha. É bonito demais para ser de verdade.
É uma ousadia descrevê-lo, por medo de que nos rotulem de
exageradas. Ninguém sabe de que buraco saiu este crápula
extraordinário, intimamente ligado, ao que parece, ao diretor da
prisão de Anrath. Diariamente, depois das cinco da tarde, já está
praticamente bêbado. Sua fábrica foi em boa parte destruída pelo
último bombardeio. Cabe a nós derrubar os muros claudicantes e
limpar os tijolos para torná-los passíveis de serem utilizados
novamente. Cabe a nós, às sessenta mulheres, a honra de construir
uma nova fábrica para que Herr Scheuring enriqueça. Seu quadro de
funcionários abrange, além de nós, Adolphe e Georges, dois
prisioneiros de guerra francesas, e dois condenados alemães a
trabalhos forçados. Naturalmente os homens estão proibidos de nos
ajudar, e o trabalho mais duro fica a nosso cargo. Carregamos as
vigas de ferro, misturamos o cimento e a argamassa, descarregamos os
caminhões de material de construção, bem como as mercadorias. Os
homens levantam os andaimes e as paredes. Algumas mulheres sentem
vertigem quando têm que subir no andaime, com o pé nu dentro dos
tamancos. […]
A
oficina não existe mais, nós a estamos reconstruindo agora. Apesar
de tudo, o feitor de escravos me chama várias vezes ao dia para
executar trabalhos pesados. O destino das mulheres que não se ocupam
da costura dos sacos nem da armazenagem é absolutamente
inacreditável. Fazem terraplanagem, cavam as valas onde entrarão
os cabos de alta tensão e os encaixam ali, fabricam o cimento e a
argamassa e transportam tudo isso para o canteiro de obras e dele
para os andaimes. […] O dia inteiro, Scheuring dirige os trabalhos.
Além da nossa guardiã, somos vigiados pelos dois filhos de
Scheuring, que têm, respectivamente, 11 e 12 anos. Eles executam à
perfeição sua tarefa de espiõezinhos nazistas e não tiram os
olhos de nós. A menina é pior que o menino. Por qualquer coisinha,
o patrão nos manda para o confinamento disciplinar, pois, para o
cúmulo da felicidade, estamos alojadas novamente em Anrath. A prisão
não mudou desde que lá cheguei em abril de 1942. no entanto, há
uma novidade: um aviso impresso em belíssima caligrafia, acima da
porta de entrada. O texto integral em francês é o seguinte:
'No
caso de bombardeio aéreo, todos devem se manter absolutamente
calmos. Quem fizer barulho ou tentativa de fuga (sic)
será fuzilado.
Assinado:
Dr. Cobrick, diretor da prisão masculina e da Maison de Force
feminina.'
O
diretor da nossa prisão se gaba de conhecer muito bem a língua
francesa. Este aviso foi postado na entrada em seguida a um terrível
surto de pânico na prisão. Todas as infelizes prisioneiras estavam
trancadas à chave lá dentro. Durante um ataque aéreo intensíssimo,
uma bomba caiu bem pertinho e, com o incêndio se alastrando pelos
prédios vizinhos à prisão, as mulheres desesperadas tentaram
arrombar as portas das próprias celas, dando origem a este pitoresco
apelo à calma.” pp. 183-185
fonte:
HUMBERT, Agnés. Resistência. (Résistance)
trad. Regina Lyra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
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