Incêndio
de Hamburg
“Em Hamburgo, as condições
também se assemelharam às de um laboratório. A arma expandiu-se
livremente, e não apenas, como outrora, dentro dos limites
permitidos pelo defensor. Mas a incrível destruição não teria
ocorrido sem a ajuda do clima, que foi considerado o agente
principal.
Em Pforzheim, fazia muito
frio; em Hamburgo, ao contrário, há uma década não se via tanto
calor e secura. Em pleno verão, a noite de 27 para 28 de julho foi
abafada, com temperaturas entre vinte e trinta graus. Da combinação
de clima, mistura incendiária, colapso defensivo e estruturas em
blocos, resultou o efeito subentendido no codinome ‘Gomorra’ que
Harris atribuíra à operação. Tal como Abraão, no Capítulo 19 do
Gênese, ele olhou para a cidade pecaminosa ‘e eis que viu a fumaça
subir da terra, como a fumaça de uma fornalha’. Foram queimadas
entre quarenta e cinquenta mil pessoas; setenta por cento dessas
mortes ocorreram no centro, onde arma atingiu uma letalidade de 5,9
por cento. Somente nas ruas residenciais de Hammerbrook, morreram 36
em cada cem habitantes. Sete mil crianças e jovens perderam a vida;
cerca de dez mil ficaram órfãos.
Os estreitos pátios internos
se transformaram em calabouços ardentes, onde os prisioneiros, sem
saída, esperavam pela morte. No zênite do turbilhão, a simples
irradiação de calor queimava as casas de uma só vez, de cima a
baixo, reduzindo-as a uma língua de fogo. Como uma gigantesca bomba,
as rajadas de vento sugavam todo o oxigênio dos porões das casas.
Em seis horas de turbilhão, dois bilhões de toneladas de ar puro
devem ter sido consumidas na chaminé de sete quilômetros de altura,
ao redor da qual a velocidade horizontal do vento chegou a 75 metros
por segundo. Sob tais condições, as pessoas perdiam o equilíbrio.
Árvores de raízes profundas foram arrancadas, ficando apoiadas
sobre a copa. Álamos foram vistos vergados até a horizontal. As
equipes de resgate que recolheram os restos dos mortos por asfixia ou
carbonização tiveram de esperar dez dias, para que os escombros
esfriassem.
[...]
Uma arma com tamanho poder é
uma arma estratégica, e deve decidir a guerra. Se não o faz,
prolonga o assassinato em massa. Após o gabinete de Churchill ter
passado três anos garantindo o aniquilamento do poder militar
adversário, o fato de ter finalmente comemorado o extermínio de
quarenta mil civis hamburgueses devia ter alguma serventia. A melhor
opção, acreditava-se, seria transformá-lo em pretexto para a
‘hamburguização’ de Berlim. Um golpe semelhante contra a
capital haveria de provocar a queda do regime e o fim das
hostilidades, nunca esquecendo a premissa implícita do ‘bombardeio
moral’. Harris citava como exemplo, até o final dos seus dias, o
bombardeio de Hiroshima.” [pp. 109-110]
“A cidade de Hamburgo, seis
vezes maior do que Kiel, foi reduzida, depois de 213 ataques, a uma
montanha de escombros oito vezes maior. Cento e doze desses ataques
ocorreram em 1940 e 1941, matando 751 pessoas. Os 56 ataques de
1944/45, por seu turno, vitimaram 5.390 pessoas. deixando de lado os
ataques incendiários do verão de 1943, as baixas fatais impostas
pelas forças aéreas anglo-americanas, de 0,31 por cento da
população anterior à guerra, teriam sido bem diminutas.
Considerando que as baixas do verão de 1943 tivessem alcançado as
mesmas cifras resultantes da carga lançada em 1944, o índice total
subiria para 0,57 por cento. Ainda assim, em face do 1,7 milhão de
bombas despejadas, à razão de uma por habitante, é forçoso
admitir uma vitória da defesa aérea hamburguense. Mais do que isso
não se conseguiu em lugar algum, durante a Segunda Guerra Mundial.
Salvo três dias, entretanto, a visão posterior dos cinco anos de
guerra aérea sobre Hamburgo sempre foi superficial.
Os quarenta mil mortos no
ataque de julho de 1943 representam, ao lado das vítimas de Dresden,
Hiroshima e Nagasaki, o maior castigo já imposto à criatura pelo
poderio bélico. Não por rios de sangue derramados, mas sim pela
maneira como os seres vivos foram alijados, com um sopro mortal, da
face da Terra. Nas guerras incendiárias e nucleares corre pouco
sangue.
Médicos do serviço de
salvamento de Hamburgo relataram que centenas de pessoas
surpreendidas pelo furacão das correntes de ar quente foram
encontradas nuas, caídas no meio da rua. A pele tinha uma tonalidade
escura, os cabelos estavam bem conservados e as mucosas do rosto,
ressecadas e incrustradas. Os que fugiam dos porões para as ruas se
detinham depois de alguns passos, deitavam no chão e tentavam
evitar, com os braços erguidos sobre a cabeça, a inspiração do ar
quente. Nessas horas, as crianças eram mais vulneráveis que os
adultos.” [pp. 188-89]
“Em Hamburgo, a maioria das
vítimas não morreu nas ruas, mas sim no inferno secundário dos
seus porões, governados ora por umas, ora por outras leis da
pirotecnia. Passado algum tempo, os porões sugavam o calor externo,
funcionando como crematórios, ou então se enchiam, de maneira
imperceptível, de gases venenosos. A causa mortis mais
frequentemente atestada pelas autoridades médicas de Hamburgo, com
uma incidência de setenta a oitenta por cento, foi o envenenamento
por gás.
O turbilhão que se formou nos
bairros operários de Hammerbrook, Hamm e Borgfeld pouco afetou o
Centro Histórico, entre a Estação Ferroviária Central e a Câmara
Municipal, que se manteve até o centésimo quinquagésimo sétimo
ataque, no dia 18 de junho de 1944, conduzido por oitocentos
bombardeiros norte-americanos que tinham como objetivo a fábrica da
Blohm &
Voss. A VIII
Força Aérea [da USAF] lançou suas bombas da altitude de sete mil
metros, e elas caíram um quilômetro ao norte do local previsto.
Alguns segundos de retardo transportaram o impacto para um alvo
totalmente diverso. Nesse caso, em vez da fábrica, quem ruiu sobre
os seus alicerces foi a estátua de Gotthold Ephraim Lessing, na
praça do Gänsemarkt, e outros alvos de somenos importância para os
norte-americanos, como a Jacobikirche, incendiada. Porém o órgão
construído por Arp Schnitger, com uma parte murada e outra
subterrânea, sobreviveu até mesmo ao tiro certeiro que pôs abaixo
a nave central da basílica, no dia 22 de março de 1945.
Apesar de Hamburgo ter sido
responsável por 43 dos quatrocentos milhões de metros cúbicos de
escombros deixados pelas bimbas na Alemanha, a imagem da cidade não
foi tão desfigurada, a ponto de torná-la irreconhecível, como em
Colônia, Nuremberg, Darmstadt, Kassel, Würzburg e Düren. A
cicatriz que ela carrega provém das três horas de duração do
primeiro turbilhão, registrado durante a noite de 28 de julho, que
tornaria real a extraterritorialidade do aniquilamento, desvinculado
do tempo, do espaço e da confiança na proteção do mundo,
permitindo que fosse suprimida, de uma hora para outra, qualquer
possibilidade de vida. Entre os verões de 1943 e 1945, período que
abarca Hamburgo, Tóquio e Hiroshima, essa possibilidade passou a
existir.
Com 83 mil mortos, Tóquio
detém o maior número de vítimas, falecidas durante a noite de 8
para 9 de março de 1945. Hiroshima, cuja população era cinco vezes
menor, teve 80 mil mortos. Hamburgo tinha três vezes mais habitantes
que Hiroshima e teve um terço a menos de baixas. Nas três cidades
se formaram turbilhões, e a maioria das vítimas morreu em
decorrência do fogo.” [pp. 190-91]
Fonte:
FRIEDRICH, Jörg. O
Incêndio.
[Der Brand]
Trad. Roberto Rodrigues. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
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