segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Ucrânia / Drang nach Osten - 1941 - testemunho



Ucrânia 1941

a realidade cruel do Drang nach Osten
(avanço para o leste)


trechos de “Kaputt” / 1944
de Curzio Malaparte

trad. de Mário e Celestino da Silva (1966)



cap.2 (patriacavalo)


“A noite já descia, os disparos de fuzil dos guerrilheiros esburacavam a imensa bandeira vermelha do por do sol, que tremulava ao vento poeirento, no fundo do horizonte. Eu já chegara a poucas milhas de Neimirowskoie, perto de Balta, na Ucrânia. Era o verão de 1941. queria alcançar Neimirowskoie para ali passar a noite em segurança. Mas já escurecera e preferi deter-me numa aldeia abandonada, no fundo de um dos vales que cortam de norte a sul a imensa planície entre o Dniester e o Dnieper.


A aldeia chamava-se Alexandrovka. Na Rússia, todas as aldeias se parecem, até no nome. Há muitas aldeias que têm  o nome de Alexandrovka, na região de Balta. Há uma a oeste de Balta, a cerca de onze milhas. Há outra a oeste de Gederimova, na estrada para Odessa, onde passa a estrada de ferro elétrica; outra ainda a cerca de nove milhas ao norte de Gederimova. Aquela onde eu me detivera para passar a noite estava perto de Nmirowskoie, na margem do rio Kodima.


Deixara o automóvel, um velho Ford, na beira da estrada, junto à cerca que rodeava a horta de uma casa de aspecto decente. Perto da cancela de madeira que havia na cerca, estava estendido um cadáver de cavalo. […]


Eu tinha ainda um pouco de pão e de queijo no meu saco de provisões e pus-me a comer, andando de um para outro lado do quarto. Tirara as botas e caminhava descalço pelo chão de terra socada, percorrido por colunas de grandes formigas pretas. Sentia as formigas treparem-me pelos pés, enfiarem-se entre os dedos, subirem para explorar os tornozelos. Estava morto de cansaço, não conseguia sequer mastigar, a tal ponto a fadiga me tornara pesados os maxilares e doloridos os dentes. Atirei-me por fim na cama, fechei os olhos, e não conseguia adormecer. De vez em quando algum tiro de fuzil, perto ou longe, perturbava a noite: eram os tiros dos guerrilheiros, escondidos nos trigais e nas selvas de girassóis que cobrem toda a imensa planície ucraniana, na direção de Kiev, na direção de Odessa. E à medida que a noite se adensava, um cheiro de carne podre se dissolvia no cheiro da grama e dos girassóis. Não podia dormir. Estava estendido na cama com os olhos fechados, e não conseguia adormecer, tanto a fadiga me doía nos ossos.” pp. 26-27


“Pus-me outra vez a caminho, e após longo trecho de estrada parei para comer um pouco do meu pão seco e do meu queijo numa aldeia abandonada. O fogo destruíra grande parte das casas. O canhão troava à minha retaguarda, na direção sudoeste. Bem à minha retaguarda. Na fachada de uma casa, via-se pintado um grande emblema, com a foice e o martelo. Entrei, era a sede de uma repartição soviética. Um enorme retrato de Stalin estava grudado numa parede. Algum soldado romeno escrevera a lápis debaixo do retrato: aiurea!, que significa 'qual nada!' Stalin estava representado em pé sobre uma elevação de terreno, contra um fundo de tanques e de chaminés, debaixo de um céu sulcado por milhares de aviões. À direita, no meio de uma nuvem vermelha, erguia-se imensa uma usina metalúrgica, um amontoado de guindastes, de pontes de aço, de altos fornos, de grandes rodas dentadas. E na parte inferior havia impresso, em grandes letras: 'A indústria pesada da URSS prepara as armas para o Exército Vermelho'. Debaixo dessa legenda via-se escrito a lápis, em romeno: aiurea!

[…]

Pensava nos tártaros do exército vermelho, que são os melhores operários mecânicos da URSS, as melhores vanguardas do trabalho, os melhores udarniki e stakhanowtzi, os elementos de primeira linha das 'tropas de choque' da indústria pesada soviética. Pensava nos tártaros do exército vermelho, que são os melhores motoristas de tanques, os melhores mecânicos das divisões couraçadas e da aviação. Pensava nos jovens tártaros que os três planos quinquenais transformaram de cavaleiros em operários mecânicos, de pastores de cavalos em udarniki das usinas metalúrgicas de Stalingrado, de Carcov [Kharkov], de Magnitogorsk. Aiurea!, que significa 'qual nada!', estava escrito em romeno, a lápis, debaixo do retrato de Stalin.

Fora decerto algum camponês romeno quem escrevera aiurea!, algum pobre camponês romeno que nunca vira uma máquina de perto, que nunca tocara numa porca, nem desapertara um parafuso, nem desmontara um motor. Algum pobre camponês romeno que o marechal Antonescu, o 'cão vermelho', como lhe chamavam os seus oficiais, metera à força naquela guerra de camponeses contra o imenso exército mecânico da URSS.” pp. 32-33



Cap.4 (Polônia)


Malaparte relata mais sobre a mecanização soviética na Ucrânia


“[...] Encontrava-me na aldeia de Pettschianka, na ucrânia, no verão de 1914 e certa manhã fui visitar um grande 'kolkhoz' nos arredores da aldeia, o Kolkhoz Vorochilov. Os russos haviam abandonado Pettschianka apenas dois dias antes. Era o maior e o mais rico dentre todos os 'kolkhozes' que eu vira até então. Tudo fora deixado em perfeita ordem mas os estábulos estavam vazios, as cocheiras desertas. Nos celeiros não havia um só grão de trigo, nos palheiros nem um só fio de feno. Um cavalo caminhava mancando no pátio: era um velho cavalo, cego e coxo.


No fundo do pátio, debaixo de um comprido alpendre, estavam alinhadas centenas de máquinas agrícolas, a maior parte de fabricação soviética, muitas húngaras, outras italianas, outras ainda alemãs, suecas, americanas. Os russos, ao se retirarem, não incendiavam os 'kolkhozes', não ateavam fogo às searas maduras e às selvas de girassóis, não destruíam a maquinaria agrícola: levavam os tratores, os cavalos, o gado, as forragens, os sacos de trigo e de sementes de girassol ! Nas máquinas agrícolas não tocavam nem nos trilhadores: deixavam-nos intatos. Contentavam-se em levar os tratores. Um operário de macacão azul estava lubrificando um grande trilhador, curvado sobre as rodas e as engrenagens. Eu me detivera no meio do pátio e ficara de longe a vê-lo trabalhar. Lubrificava as suas máquinas, continuava a exercer o seu ofício, como se a guerra estivesse longe, como se a guerra não tivesse sequer roçado a aldeia de Pettschianka. Depois de alguns dias de chuva saíra o sol, o ar estava tépido, as poças de água lamacenta espelhavam um pálido céu azul, percorrido por neves brancas.”

pp. 62-63



fonte:

MALAPARTE, Curzio. Kaputt. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.


seleção: LdeM



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