trecho
da peça teatral O
Vigário [O
Representante]
[
Der
Stellvertreter,
1963; The
Deputy,
1964; El
Vicario]
de Rolf Hochhuth [1931-]
Ato I – A Missão / Ato II –
Os Sinos de São Pedro
Ato III – A Visita
Ato IV – Il Gran Rifiuto
(a ação se passa em 1943.
quando há referência ao Chefe, entenda-se o Papa Pio XII, Eugênio
Pacelli, 1876-1958. LdeM)
“No Palácio Pontifício.
Uma pequena Sala do Trono, quase vazia, frequentemente usada como
salão para audiências mais íntimas e conversas sobre negócios.
Está atapetada de vermelho – cor das vestes dos Cardeais que, como
se sabe, simboliza a disposição de defender a fé a ponto de
'derramar o próprio sangue'. O Papa veste de branco, evidentemente.
Sua batina é tão alva como a pomba com o ramo de oliveira do seu
brasão de armas, bordado com a tiara e as duas chaves cruzadas na
colgadura suspensa atrás do trono dourado.
Esta colgadura eleva-se até o
baldaquino que, por sua vez, se eleva até ao teto – tão alto que
não é visível aqui. De ambos os lados do trono, pouco elevado, há
uma porta estreita e alta, também encobertas, as duas, por
cortinas de ouro e púrpura. Encostado à parede da esquerda está um
consolo de estilo barroco, com um relógio astronômico e apetrechos
para escrever. Em cima, um grande crucifixo de latão forjado. Alguns
escabelos dourados junto às paredes. Não há guardas.
O Cardeal está conversando
com o velho Fontana [Conselheiro da Santa Sé]. O Conde, com uma
pasta debaixo do braço, está de casaca, com a Ordem de Cristo. Sua
Eminência, embora esteja bem no seu ambiente, mostra-se mais
impessoal que em suas visitas à casa dos Fontana ou ao convento,
mais parcimonioso e comedido em palavras e gestos.
CARDEAL
(lamentando-se):
… seja como for, não é verdade? … foi só em setembro que Herr
Hitler...
FONTANA: Ah, sim, foi há
pouco...
CARDEAL: Sim! Muito
confidencialmente, fez saber ao Chefe que considera os bombardeiros
como qualquer outra arma, não é mesmo? Que o Governo Alemão foi o
primeiro a empregar essa arma e espera responder já, como vigor, ao
atual contra-ataque dos Aliados. Vamos ver, não é mesmo?
FONTANA: Naturalmente, o
orgulho impede Hitler de mandar o Papa como emissário à Casa
Branca.
CARDEAL
(não sem
malícia):
Mas o Chefe está muito ofendido, como sempre, quando rejeitam os
seus préstimos como intermediário. Gosta tanto de escrever cartas a
Mr. Roosevelt, que não dizem nada, não é mesmo?
FONTANA
(vivamente):
É a Hitler que ele deveria escrever, Eminência! Esse revoltado,
esse patife até com os judeus de Roma se permite...
CARDEAL:
O senhor pensa que Herr
Hitler sabe como a sua corja se comporta aqui? Seja como for, também
viemos hoje para falar nisso. Tenho rezado pelos judeus...
FONTANA
(frio):
Constitui uma reabilitação que o Papa finalmente protestasse,
Eminência. Ouvi esse rumor hoje de manhã cedo, por intermédio do
homem de confiança [ Kurt Gerstein, Obersturmführer
SS] que meu
filho [Riccardo Fontana] tem nas SS .
CARDEAL
(muito
surpreendido e até assustado):
Protestar? De modo nenhum, o Chefe não protestou, Conde! Aí vem
ele. Não, disso eu não sei nada.
FONTANA
(surpreso):
Mas sim! Hoje de manhãzinha, ele …
[…]
CARDEAL
(sinceramente
contrariado):
Sim, não é mesmo? … Agora, depois da queda de Mussolini, que
apesar de tudo sempre enfrentou o comunismo e era uma garantia da
ordem social, produziu-se um vácuo que me enche de grande pavor, não
é mesmo? Graças a Deus que os alemães ainda estão no país e não
permitirão greves nem madraçaria. Mas... que vai acontecer quando
as suas tropas se retirarem, hem... não é mesmo?
PAPA:
então teremos os americanos aqui, Eminência. À tarde receberemos o
enviado do Presidente em audiência. Infelizmente, Mr. Taylor vem
sempre e sempre com o pedido de Mr. Roosevelt para que condenemos as
infâmias praticadas por Hitler. Não foram os alemães que
bombardearam San Lorenzo. Os alemães retiraram todos os livros e
pergaminhos de Monte Cassino, pondo-os a salvo no Castelo Sant'Angelo
(em tom
aflito) e
depois vieram os bombardeiros de Mr. Roosevelt e converteram essa
cidadela de paz em cinza e pó. Não obstante, que falta
de tato a
dos alemães, levando também os judeus de Roma. (Sumamente
indignado):
Tendes ouvido falar disso, Conde? … Eminência? Que coisa mais
malcriada!
FONTANA: Roma está
abalada,Santíssimo Padre.
CARDEAL: sim, não é mesmo?
.. um atrevimento infame!
FONTANA: Seja-me permitido,
também em nome dos israelitas que têm procurado refúgio em minha
casa, expressar os meus mais profundos agradecimentos a Vossa
Santidade.
PAPA
(todo
bondade, espontâneo, cordial):
Mas, caro Fontana, não é preciso dizer que Nós faremos, como
sempre, tudo aquilo que Deus nos permitir fazer para amparar os
infelizes.
FONTANA:
Constitui uma verdadeira redenção
o ter Vossa Santidade feito agora tão decidida ameaça como uma
declaração pública. Ser-me-á permitido, com toda a humildade,
perguntar se já houve alguma reação do Comandante alemão da
cidade?
O Papa olha com
desconfiança e sem compreender para o Cardeal, e depois para
Fontana.
CARDEAL: O Comandante da
cidade? Reação a quê?
PAPA
(desconfiado):
Reação? A quê, Conde?
FONTANA
(algo
inseguro, suspeitando o que está por vir):
Bem, ouvi meu filho dizer que o Bispo Hudal, esta manhã, ameaçou o
Comandante da cidade de que Vossa Santidade faria um protesto
pela primeira vez desde que a guerra começou.
PAPA
(com
aspereza): O
bispo ameaçou? Em Nosso Nome! Eminência, haveis dado poderes a
Hudal, em nome da Santa Sé ou em Nosso Nome...
CARDEAL: Tomo a Deus por
testemunha, Santíssimo Padre! Eu só ouvi falar do protesto aqui,
dos lábios do Conde... Não pode ser, não acredito, não é
mesmo...
FONTANA
(excitado):
Não sei quais os termos exatos! O Bispo talvez não tenha protestado
realmente em nome de Sua Santidade, e sim apenas anunciado que era de
esperar uma declaração pública do Santo Padre. Meu filho [Riccardo
Fontana ] diz...
PAPA
(muito
descontente):
Vosso filho, Conde Fontana... onde está vosso filho? Não devia
estar em Lisboa?
CARDEAL
(assustado,
pressuroso):
Esta lá embaixo, na Secretaria de Estado, Beatíssimo Padre, à
minha espera.
PAPA
(sumamente
indignado):
Mandai-o subir! Terá de explicar-nos com que autoridade se permite,
como membro de Nosso Serviço Exterior, intrometer-se constantemente
nesses assuntos. Os judeus e os alemães são matéria afeta aos dois
Padres que para tanto nomeamos expressamente.
O Cardeal dirigiu-se logo a
porta e murmurou uma ordem ao Guarda Suíço. Em face da cólera do
papa, o dever de obediência leva-o também a mostrar má cara ao
velho Fontana.
FONTANA: Perdão, Santíssimo
padre, para meu filho. Seu zelo é filho do desespero. Em Berlim ele
foi testemunha de como os nazistas arrojavam criancinhas judias em
caminhões...
PAPA
(um gesto de
aborrecimento, e depois com voz apaixonada, impulsivo):
Testemunha! … Conde, um diplomata tem de ver muita coisa e …
calar. Vosso filho não tem noção de disciplina. O Núncio de
Bratislava já sabia, em julho do ano passado, que tinham eliminado
os judeus eslovacos do distrito de Lublin. Deixou ele Bratislava por
causa disso? Não, continuou a cumprir o seu dever, e vede o
resultado: nenhum outro judeu está sendo levado para a Polônia.
Quem quiser ajudar, não deve provocar Hitler: tem de atuar
secretamente, como os nossos dois Padres, com discrição, astuto
como a serpente. Assim é que se deve lidar com os S S. Ocultamos
centenas de judeus em Roma. Milhares receberam salvo-condutos! Hitler
já não é tão perigoso. Diz-se em Portugal e na Suécia que ele
está negociando a paz com Stalin. São rumores que nos alegram o
coração, pois, embora saibamos que nada têm de certo – assim o
esperamos, ao menos – contribuirão um pouco para dispor mais a
Casa Branca e Londres a um compromisso: é preciso negociar,
não se deve apostar a Europa inteira num 'tudo ou nada', e fazer de
Stalin o herdeiro de Hitler. Deixamos que as autoridades pastorais de
cada localidade decidam por si mesmas até que grau cabe esperar
represálias, no caso de proclamações episcopais. Se ficamos
calados, caro Conde, também
calamos ad
maiora mala vitanda
(para evitar males maiores).
FONTANA (comovido): Mas o
Núncio de Vossa Santidade em Bratislava, com o seu protesto, salvou
a vida de inúmeras vítimas, sem que os assassinos se vingassem.
PAPA: Lembrai-vos de Nossa
última mensagem de natal; foi toda uma súplica pelo amor ao
próximo. E qual o resultado? Os assassinos simplesmente a ignoraram.
FONTANA: Santíssimo Padre,
também eu senti imenso pesar ao ver que a mensagem não produziu
efeito. Mas, lamentavelmente, nela Vossa Santidade não mencionava
expressis verbis os judeus, nem tampouco o terror dos
bombardeamentos contra cidades abertas. A mim me parece que, diante
de Hitler e Churchill, é preciso falar com a franqueza mais rude.
[…]
RICCARDO (perdendo por
momentos o domínio de si mesmo): Esse auxílio só alcança
alguns judeus da Itália, Eminência! Isso também já foi discutido
muitas vezes. (Voltando-se para falar simultaneamente ao Papa):
Mas o terror reina agora em todos os países! Só na Polônia já
foram assassinados um milhão e oitocentos mil judeus! E como esta
cifra foi transmitida oficialmente em julho ao Legado Papal em
Washington, pelo Embaixador de Varsóvia junto à Casa Branca –
Deus não há de querer que Vossa Santidade a ignore!
CARDEAL (indignado): Saia
daqui para fora... não é mesmo … como se atreve a falar desse
modo na presença do Santo Padre! Conde, proíba seu filho...
Durante as últimas
palavras de Riccardo o Papa levantara-se, mas depois volta a
sentar-se. Decorre um momento antes que consiga falar, o que faz com
grande esforço.
PAPA: 'ignorar'! Não temos a
intenção de prestar contas a Riccardo Fontana. O Senhor seu Pai não
tem nada a dizer? Não obstante, gostaríamos de acrescentar algumas
palavras ao assunto. (Com aspereza crescente, numa tentativa de mudar
de tema): Sabeis, vós, Sr. Secretário, exempli causa, que há
algumas semanas já estávamos preparados, com ouro, com grande soma
de ouro, para ajudar os judeus de Roma, que queriam deportar, a sair
de sua dificuldade? Os bandidos de Hitler prometeram a liberdade dos
judeus mediante resgate. Depois, quiseram exigir-nos uma soma
completamente fora da realidade, uma chantagem. Pois ainda assim,
pagamos!
RICCARDO (volta-se
desconcertado para o pai; depois, diz rapidamente ao Papa): Então
Vossa Santidade já sabia, há várias semanas, o que os SS queriam
fazer aos judeus?
PAPA (irritado, evasivo): Que
dizeis?! O Superior-Geral poderá confirmar tudo o que já se fez. Os
conventos e mosteiros estão de portas abertas...
[…]
FONTANA (interpondo-se
entre o filho e o Papa): Posso falar pelo meu filho, Beatíssimo
Padre?
PAPA: De que se trata, Conde?
FONTANA: Santidade, se ousasse
pedir-vos, com toda a humildade... Ameaçai Hitler de forçar
quinhentos milhões de católicos a protestar cristãmente se ele
continua com os assassínios em massa!
O Papa vê que tem de
responder de modo objetivo a este experimentado conselheiro. Está
desgostoso, irritado e fala como se voltasse a dizer o que já tinha
explicado mil vezes antes. Não obstante, consegue dominar-se,
aproxima-se de Fontana e põe-lhe a mão no ombro.
PAPA: Fontana! Um conselheiro
da vossa perspicácia! Como é amargo que também vós não Nos
compreendais. Não vedes que a catástrofe é iminente para a Europa
cristã, se Deus não Nos utiliza, a Santa Sé, como Mediador? A hora
é tenebrosa, embora tenhamos por certo que o Vaticano não será
atacado. Herr Hitler renovou muito recentemente a sua
garantia. Mas... e os Nossos batéis que estão ao largo e temos de
pilotar? A Polônia, todos os Balcãs e também a Áustria e a
Baviera.... a que portos irão arribar? Poderiam naufragar facilmente
na tormenta, ou ser arrastados à deriva para os recifes de Stalin.
Hoje, a Alemanha é Hitler. Só os fantasistas diriam que a queda do
atual regime alemão não teria como consequência o colapso da
frente militar. Pelos generais de Hitler que o querem suprimir, não
temos o menor respeito. Eles queriam negociar na primavera de 1940. E
como o fizeram? Deixaram-se condecorar por Hitler e reduziram a
Europa inteira a escombros. Conhecemos essa gente desde que estivemos
em Berlim : os generais não têm nenhuma opinião. Se Hitler cai,
voltam para casa...
CARDEAL: E Stalin ficaria com
o caminho livre para Varsóvia, Praga e até Viena... sim, direto ao
Reno, não é mesmo?
PAPA (que se sentou outra
vez): Verá bem claro isto o Presidente Roosevelt? Stalin nem
sequer escuta uma palavra que ele diga. Desde a conferência de
Casablanca [em janeiro de 1943], a razão deixou de dominar na Casa
Branca. E Mr. Churchill é fraco demais. Não parece que se decida a
abrir uma segunda frente no Ocidente. Ficaria feliz se os russos e
alemães se exaurissem uns aos outros completamente na luta.
CARDEAL: Nós também não
podemos ser muito contrários a isso, não é mesmo?
PAPA (sublinhando cada
palavra com uma palmada no braço do trono): Somente Hitler
defende hoje a Europa, caro Conde. E combaterá até a morte, porque
um assassino não espera perdão. Não obstante, o Ocidente deve
perdoá-lo na medida em que ele seja útil no Leste. Em março,
declaramos publicamente que nada, absolutamente nada, tínhamos a ver
com os objetivos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Primeiro, ele
têm de acertar as coisas com os alemães. O Ministro de Assuntos
Exteriores da Espanha, infelizmente, já propagou isso pelo mundo
inteiro. Mas, seja como for, a Razão de Estado proíbe denunciar
Hitler como um bandido, pois ele deve continuar a ser um interlocutor
digno. Não temos alternativa. O Serviço Secreto de Hitler aqui em
Roma entrou em contato com o Superior-Geral dos Jesuítas... é
lamentável, Sr. Secretário, que nada saibais dos esforços de vosso
Superior...
RICCARDO: Sei muito bem,
Santíssimo Padre. Mas não entendo que possamos utilizar Hitler como
instrumento.
PAPA: Um instrumento que
atiraremos fora, tão logo...
CARDEAL: Louvado seja Deus,
Sr. Secretário, que a sua opinião seja completamente
insignificante.
RICCARDO (hostil): O
Santo Padre me fez uma pergunta, Eminência! Devo responder,
Santíssimo Padre?
PAPA (álgido):
Objetivamente, sim, objetivamente. Objetivamente.
RICCARDO (em tom de ataque,
cujo único resultado é já ninguém lhe dar ouvidos):
Santíssimo padre, deve-se ter em mente que nós, os jesuítas,
estamos formando há anos especialistas para a Rússia, que seguiriam
atrás de Hitler, isto é, das tropas alemãs, com o fim de
catequizar os russos.
CARDEAL (furioso):
Sim... e daí? Poderia prever, Sr. Secretário, antes da invasão,
que Stalin conseguiria aguentar tanto tempo?
RICCARDO (outra vez para o
Papa): Também os comentários de muitos Bispos sobre a pretensa
cruzada de Hitler são... blasfêmias. Também é culpa do Vaticano,
Santíssimo Padre, se agora a tormenta vermelha ameaça a Europa.
Quem semeia ventos... Resumindo, a Rússia é que foi atacada!
O Papa faz um par de
movimentos nervosos com as mãos. Cala-se, seja por estar tão
agitado que não consegue articular a voz – como antes – seja por
considerar abaixo de sua dignidade o dar resposta.
[...]
pp. 179-191 (trechos)
fonte: HOCHHUTH, Rollf. O
Vigário. [Der Stellvertreter] trad. João Alves dos
Santos. Grijalbo, 1965.
mais info em
sobre
a Conferência
de Casablanca
janeiro de 1943
filme
Amen
[2002] de Costa Gravas
baseado na peça de Hochhuth
para ouvir