terça-feira, 16 de outubro de 2012

Relações entre Papado e Nazismo - intro





Relações entre Papado e Nazismo


fonte: CORNWELL, John. Papa de Hitler – A História Secreta de Pio XII . (Hitler's Pope: the secret history of Pius XII. 1999) Trad. A . B. Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000


     Inquieto com as acusações da conivência de Eugenio Pacelli, o Papa Pio XII, com o regime hitlerista, o professor e jornalista britânico John Cornwell solicitou aos Arquivos do Vaticano uma série de documentos da época de atuação do secretário e depois Papa, Pacelli no intuito de melhor averiguar as ações e negociações do líder eclesiástico. O propósito de Cornwell, enquanto católico, segundo se explica no Prefácio, era esclarecer os fatos e mostrar a face real (e não preconceituosa) de Pacelli. Mas o estudioso viu num 'choque moral', pois

o material que eu recolhera, assumindo a mais ampla visão da vida de Pacelli, não servia para inocentá-lo; em vez disso, consolidava as acusações. Minha pesquisa, abrangendo a carreira de Pacelli desde o início do século, contava a história de manobras sem precedentes para a conquista do poder papal, que levaram a Igreja católica, em 1933, a uma cumplicidade com as forças mais sinistras de nossa era. Além disso, descobri evidências de que Pacelli num estágio inicial de sua carreira, deixou transparecer uma inegável antipatia contra os judeus; e de que sua diplomacia na Alemanha na década de 1930 resultara na traição das associações políticas católicas que poderiam ter desafiado o regime de Hitler e impedido a Solução Final. Eugenio Pacelli não foi nenhum monstro; seu caso é mais complexo do que isso, mais trágico.” (p. 10)

     Vejamos mais trechos da obra polêmica de Cornwell, que contextualiza o secretário ambicioso no seio do poder papal,

Em 1933, [Eugênio] Pacelli encontrou um acessível parceiro de negociação para sua Concordata do Reich na pessoa de Adolf Hitler. O tratado firmado pelos dois autorizava o papado a impor as novas leis canônicas aos católicos alemães, além de conceder generosos privilégios ao clero e às escolas católicas. Em troca, a Igreja católica na Alemanha, seu partido político com representação parlamentar e suas centenas de associações e jornais abstinham-se 'voluntariamente', seguindo a iniciativa de Pacelli, de qualquer ação social e política. A renúncia à ação política pelo catolicismo alemão em 1933, negociada e imposta pelo Vaticano por Pacelli, com a concordância do papa Pio XI, permitiu que o nazismo pudesse se elevar sem qualquer oposição da mais poderosa comunidade católica do mundo. Foi o contrário do que ocorrera 60 anos antes, quando os católicos alemães combateram e derrotaram as perseguições do Kulturkampf de Bismarck. (ver info) Como o próprio Hitler gabou-se numa reunião ministerial a 14 de julho de 1933, a garantia de não-intervenção de Pacelli deixava o regime livre para resolver a questão judaica. Segundo as atas da reunião, '[Hitler] expressou a opinião de que só se podia considerar isso como uma grande realização. A concordata proporcionava uma oportunidade à Alemanha e criava uma área de confiança bastante significativa na luta em desenvolvimento contra o judaísmo internacional'. A percepção do endosso papal ao nazismo, na Alemanha e no exterior, ajudou a selar o destino da Europa.” p. 18

     O trabalho de Pacelli nos bastidores do Vaticano foi no sentido de unificar poder das lideranças católicas num aumento do poder papal, com o decreto da Infalibilidade, em novo Código de Direito Canônico, que concentrou o poder de modo absolutista, ao contrário do que desejavam os democratas-cristãos (chamados de 'modernistas' por tentarem conciliar catolicismo e democracia, e combatidos pelo Papa Pio X, defensor da ortodoxia tradicionalista) favoráveis a uma distribuição do poder entre os bispos de cada nação. Com a atuação de Pacelli o absolutismo papal, hierárquico e centralizado, onde os bispos eram nomeados, prevaleceu sobre a democracia no catolicismo.

     Pacelli, enquanto secretário, enfrentou as questões religiosas e anticlericalismo na França, articulou uma concordata com os católicos sérvios (que muito desagradou aos líderes do Império Austro-Húngaro). Sobre o acordo que provocou os ânimos de sérvios e ira de austríacos (o que levou a Primeira Grande Guerra em 1914) diz o autor Cornwell,

O que fica patente desse episódio é o impacto potencialmente negativo da diplomacia do Vaticano nas relações culturais e políticas, seu poder de provocar desânimo e insegurança, sua sua intenção de complicar ainda mais e perturbar as crescentes tensões entre os países. A Santa Sé, é mais do que foi evidente, não foi uma mera espectadora espiritual, interessada exclusivamente no bem-estar dos católicos da Sérvia, mas sim uma participante ativa no cenário internacional, com suas próprias ambições e objetivos a longo prazo.” pp. 71-72

      Trabalhando na diplomacia do Vaticano, então com o titulo de Núncio Apostólico, Pacelli se envolveu nas negociações do plano de paz durante a Primeira Grande Guerra no contexto do Império Alemão em decadência, tendo audiências com o próprio Kaiser Wilhelm II. Com o sucesso da atuação na Alemanha, segundo Cornwell (“Pacelli viajou incansável por toda a Alemanha durante os últimos 12 meses de guerra, levando alimentos e roupas para os famintos 'de todas as religiões', em nome da Santa Sé.” (p. 83), no contexto do colapso do Império e as tentativas de governos comunistas (ver a República Soviética da Baviera, proclamada em Munique), Pacelli recebeu aprovação do Vaticano, uma Nunciatura na Prússia, durante a nova República de Weimar (erguida nas cinzas do Reich) a subir na carreira, de concordata em concordata, sendo Cardeal Secretário de Estado (em 1929) e Camerlengo no pontificado de Pio XI (em 1935). Lembrar que, em 1929, é assinado o Tratado de Latrão entre a Santa Sé e o governo fascista italiano de Benito Musssolini.

     Em toda a sua carreira Pacelli mostrava suspeita (quando não menosprezo) pelos judeus, ora ligados ao bolchevismo ora a usura capitalista. Para o Núncio a atuação dos judeus era sempre no sentido de destruir a 'civilização cristã', daí o apoio judaico à bolchevização do mundo. (Era a mesma 'ambiguidade' dos nazistas ao ligarem os judeus ora ao comunismo ora ao capitalismo, mas sempre na condição de inimigos). Principalmente, Pacelli foi responsável pela neutralização do Partido do Centro – democrata-cristão –, em participação no governo junto com social-democratas, o que mostra o quanto atuava independente do Vaticano.

A aquiescência do povo alemão diante do nazismo não pode ser compreendida em sua totalidade sem se levar em consideração o longo caminho iniciado em 1920, para a Concordata do Reich, de 1933, o papel fundamental de Pacelli e os motivos de Hitler para assiná-lo. As negociações foram conduzidas exclusivamente por Pacelli, em nome do papa, por cima das cabeças dos fiéis, do clero e dos bispos alemães. (quando Hitler se tornou o parceiro de Pacelli nas negociações, a concordata passou a ser o supremo ato de dois autoritários, enquanto os supostos beneficiados saíam enfraquecidos e neutralizados.)” p. 98

e

Treze anos depois [1933], um homem, Adolf Hitler, haveria de se interpor entre Pacelli e seu sonho de uma superconcordata, que imporia a plena força da lei canônica a todos os católicos da Alemanha. Antecipando essa negociação final, a principal condição imposta por Hitler em 1933 foi nada menos que o afastamento voluntário dos católicos alemães da ação social e política como católicos, inclusive a dispersão voluntária do Partido do Centro, que àquela altura era o único partido democrático viável que ainda sobrevivia no país. Essa abdicação do catolicismo político seria implementada pelo próprio Pacelli (que já se tornara então cardeal-secretário de Estado no Vaticano), usando os consideráveis poderes de persuasão à sua disposição.” p. 99


     Era clara a preocupação de Hitler com a atuação política do catolicismo alemão, “Adolf Hitler reconheceu logo num estágio inicial o potencial para a resistência católica ao nacional-socialismo. Em Mein Kampf, ele escreveu que uma confrontação com a Igreja católica na Alemanha seria desastrosa. Durante seus dias de vagabundo em Viena, recordou ele, ponderara sobre as consequências inúteis da Kulturkampf e concluíra sobre a importância de traçar uma distinção rigorosa entre o catolicismo político e o catolicismo religioso. […] numa circular do partido [NSDAP] distribuída em 1927, ele determinou que todas as declarações sobre religião estavam proibidas por razões táticas.” (p. 121)

     Pois Hitler sabia que os ideais nazistas estavam em clamoroso contraste com o cristianismo – contraste este que as igrejas cristãs só perceberam mais tarde. Mitologia pagã, eugenia, guerra total, extermínio de populações inteiras, como tudo isso poderia ser realizado por um povo cristão? Muitos líderes cristãos resistiram ao nazismo quando perceberam que este não era um 'refúgio' contra o ateísmo bolchevique. (Os bolcheviques, desde o princípio, haviam se declarado contra as religiões institucionalizadas, que alimentavam a alienação das massas populares.) Mas Hitler pregava o amor ao próximo e a tolerância? Ao contrário: proclamava guerra e perseguição política e racial.

     Em outro momento continuaremos com esta exposição sobre as relações entre o Papa Pio XII e o Führer, entre o poder papal e o poder nazi-facista.


fonte: CORNWELL, John. Papa de Hitler – A História Secreta de Pio XII . (Hitler's Pope: the secret history of Pius XII. 1999) Trad. A . B. Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000


seleção / comentários by Leonardo de Magalhaens




more info

Tratado de Latrão (1929)

a concordata com os nazistas
(atualmente ainda válida)




sobre a peça teatral “O Representante” ou
O Vigário” (Der Stellvertreter, 1963)
do alemão Rolf Hochhuth (1931-)




filme baseado na peça:
movie “Amen” / 2002

sobre a Kulturkampf na era de Bismarck


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