sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Discurso de Thomas Mann aos ouvintes alemães - agosto 1942



Thomas Mann

'Discursos contra Hitler' (1940-1945)

na BBC

Deutsche Hörer



Agosto de 1942


Ouvintes alemães!

A mitologia grega nos conta a história de um rei, Midas, que transformava em ouro tudo aquilo que tocava. A experiência que temos hoje é a de um toque que, imediatamente, transforma tudo, mesmo o mais nobre, em imundície: trata-se do nacional-socialismo, ao qual foi dado esse dom terrível. O nazismo rouba, distorce, deturpa, corrompe e suja tudo o que é bom e bem-intencionado, todos os pensamentos de nossa época, nascidos da boa vontade em relação ao espírito e ao futuro, do desejo de aperfeiçoamento da vida social; a tudo ele deforma e confere um cheiro repugnante de inferno; tudo o que ele pega –e ele pega tudo – se torna em suas mãos inevitavelmente excremento e imundície. Eu já disse antes e torno a dizer: o elemento da deformação é o mais forte e característico desse fenômeno terrível. Ele deformou todas as ideias defendidas pelas pessoas de bem em todo o mundo e fez delas algo que afastou todas as pessoas decentes. A ideia de socialismo, por exemplo, apresentada a nós recentemente, em toda sua autenticidade e pureza, no discurso mundialmente conhecido do vice-presidente dos Estados Unidos, Henry A. Wallace, sobre ' o século do homem comum' – o que acontece com ela quando a corja hitlerista a põe na boca e em prática? Degradação e tutela, trevas, apatia geral e embotamento, em resumo: escravidão.

A própria ideia de revolução, que em todos os tempos e mesmo em suas realizações mais cruas, estava ligada aos esforços mais magnânimos da humanidade, com o anseio por mais liberdade, mais justiça, mais felicidade na Terra, como revolução nacional-socialista tornou-se roubo, pilhagem, extermínio, negação brutal das conquistas de milhares de anos, um retrocesso fanático à bestialidade. A ideia de paz, para também falar dela, será que não a amamos e nela acreditamos? Será que não sentimos que a paz é a ordem do dia mundial e a guerra apenas uma evasão negligente e um desvio das grandes tarefas que estão agora diante da humanidade e que apenas em paz e pela paz podem ser resolvidas? Pois bem: até o nacional-socialismo diz 'paz', reivindica 'paz'. Mas o que entende por isso? A submissão forçada ao mal, o autoabandono do ser humano – é isso que significa; ele fez do pacifista mais convicto alguém que aceita a guerra, a guerra inevitável contra ele. Não era o amor à pátria um belo, natural e bom sentimento – o amor às tradições, à cultura, à língua do povo no seio do qual se nasce -, um amor que se dá tão bem com a simpatia e a admiração por outras variações do humano, pelo charme intelectual e pelas contribuições culturais de outras nacionalidades? O que esse avesso de Midas, o nacional-socialismo, fez do ouro do patriotismo? Ora, sujeira, naturalmente. Arrogância estúpida, furiosa insolência racial, autoendeusamento maníaco e assassino, ódio, violência e loucura, foi nisso que ele transformou o amor à pátria. E sobre a completa infâmia, sobre a mais insensata degeneração do nacionalismo alemão ele quer construir a 'Nova Ordem', a Europa.

Europa! Ele está quase nos fazendo perder o gosto pela ideia de 'Europa': sim, ele mutilou essa ideia como nenhuma outra. 'A Europa quer se tornar una', disse Nietzsche. 'Nós, os bons europeus' – essas palavras são dele, assim como as palavras sobre a 'divisão da Europa em pequenos Estados', divisão que precisa acabar. A noção de 'Europa' era para nós querida e cara, algo natural para nosso pensamento e nosso querer. Era o contrário da estreiteza provinciana, do egoísmo limitado, da brutalidade nacionalista e da falta de educação; significava liberdade, amplitude, espírito e bondade. 'Europa', isso era um patamar, um padrão cultural: um livro ou uma obra de arte eram bons se alcançavam o espaço europeu: só se podia ser um bom e distinto alemão quando se era um europeu. O nacional-socialismo tomou a coisa para si. Ele também diz 'Europa' – mas da mesma maneira que diz 'revolução' ou 'paz' ou 'pátria'. Não é a Alemanha que deve se tornar europeia e sim a Europa que deve se tornar alemã. Sob a desesperada resistência dos povos, banhado em sangue, cercado de lamentos e maldições, insensível diante de um ódio que nenhum povo da Terra jamais teve de experimentar, o nazismo trabalha para fazer da Europa um apêndice da Alemanha monopolista, um apêndice sem importância, castrado, intelectualmente degradado, apenas esparsamente povoado por raças exploradas de escravos – um 'protetorado' alemão no sentido mais desonroso da palavra.

No 'protetorado' da Tchecoslováquia, quase todas as universidades e escolas médias foram fechadas, bibliotecas e laboratórios, saqueados. Nas escolas, não se pode aprender nada de história tcheca, mas língua alemã e ideologia nazista têm 16 horas semanais. Língua tcheca está sendo morta: é proibida na administração, na justiça, na constituição das leis. Uma guerra de extermínio assola as populações cujos territórios são atravessados pela máquina de conquista. Em breve, não haverá mais poloneses no território anexado, que se chama 'Warthegau'. Aqueles nos Balcãs que não podem realizar trabalhos forçados são abandonados à própria sorte. A Grécia passa fome e morre. Romênia, Finlândia e Hungria sangram nos campos de batalha, enquanto os iugoslavos são massacrados em suas terras. Os holandeses são 'transferidos'. O Departamento e Polícia Racial trabalha harmoniosa e efetivamente com os comandos assassinos da Gestapo. A população da França deve e irá diminuir para 20 milhões. Em Paris, a vida noturna é 'encorajada'. Os nazistas só têm de Paris essa ideia de 'vida noturna'. É uma ideia bruta, e a ideia que ele tem da Europa como um todo, a maneira como pensa nela, como cuida dela e a ama, aparece na resposta que um oficial alemão do Alto Comando deu ao adido militar mexicano em Berlim que havia perguntado o que os nazistas iriam fazer para resolver o problema da fome e das revoltas na Europa: 'Toda a Europa pode morrer de fome', disse o alemão, 'desde que o nosso exército esteja suficientemente abastecido. Preferimos exterminar toda a população civil a capitular.' Palavras de um homem, palavras de um bom alemão europeu. Será que foram pronunciadas no momento em que , em Weimar, se reunia o Congresso de Escritores Europeus, organizado por Goebbels, sob a presidência do pobre Hans Carossa e com participação de toda espécie de escritores quisling (i.e. 'colaboracionista') e empregados literários colaboracionistas do Norte , do Sul , do Leste e do Oeste?

A Europa de Hitler é uma farsa macabra como esse congresso de escritores – uma horrível inversão e aviltamento de uma ideia madura que há tempos espera sua concretização. Um dia será realizada, mas, Deus queira, não no estilo vil dos nazistas. Uma obra geral de restauração espiritual terá de começar quando Hitler for derrotado – já deve começar agora para que ele seja derrotado. Será preciso restaurar as ideias de socialismo, de revolução, de paz, de amor à pátria, mutiladas pelo gorila Midas. Será preciso restaurar, acima de tudo e ao mesmo tempo, a ideia de 'Europa', que era e precisa se tornar outra vez uma ideia de liberdade, de honra dos povos, de simpatia e de cooperação humana no coração dos homens bons.”

pp. 99-104


Trad. Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. RJ: Jorge Zahar, 2009.



Seleção : LdeM


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