Thomas
Mann
'Discursos
contra Hitler' (1940-1945)
na
BBC
Deutsche
Hörer
Agosto
de 1942
Ouvintes
alemães!
A
mitologia grega nos conta a história de um rei, Midas, que
transformava em ouro tudo aquilo que tocava. A experiência que temos
hoje é a de um toque que, imediatamente, transforma tudo, mesmo o
mais nobre, em imundície: trata-se do nacional-socialismo, ao qual
foi dado esse dom terrível. O nazismo rouba, distorce, deturpa,
corrompe e suja tudo o que é bom e bem-intencionado, todos os
pensamentos de nossa época, nascidos da boa vontade em relação ao
espírito e ao futuro, do desejo de aperfeiçoamento da vida social;
a tudo ele deforma e confere um cheiro repugnante de inferno; tudo o
que ele pega –e ele pega tudo – se torna em suas mãos
inevitavelmente excremento e imundície. Eu já disse antes e torno a
dizer: o elemento da deformação é o mais forte e característico
desse fenômeno terrível. Ele deformou todas as ideias defendidas
pelas pessoas de bem em todo o mundo e fez delas algo que afastou
todas as pessoas decentes. A ideia de socialismo, por exemplo,
apresentada a nós recentemente, em toda sua autenticidade e pureza,
no discurso mundialmente conhecido do vice-presidente dos Estados
Unidos, Henry A. Wallace, sobre ' o século do homem comum' – o que
acontece com ela quando a corja hitlerista a põe na boca e em
prática? Degradação e tutela, trevas, apatia geral e embotamento,
em resumo: escravidão.
A
própria ideia de revolução, que em todos os tempos e mesmo
em suas realizações mais cruas, estava ligada aos esforços mais
magnânimos da humanidade, com o anseio por mais liberdade, mais
justiça, mais felicidade na Terra, como revolução
nacional-socialista tornou-se roubo, pilhagem, extermínio, negação
brutal das conquistas de milhares de anos, um retrocesso fanático à
bestialidade. A ideia de paz, para também falar dela, será
que não a amamos e nela acreditamos? Será que não sentimos que a
paz é a ordem do dia mundial e a guerra apenas uma evasão
negligente e um desvio das grandes tarefas que estão agora diante da
humanidade e que apenas em paz e pela paz podem ser resolvidas? Pois
bem: até o nacional-socialismo diz 'paz', reivindica 'paz'. Mas o
que entende por isso? A submissão forçada ao mal, o autoabandono do
ser humano – é isso que significa; ele fez do pacifista mais
convicto alguém que aceita a guerra, a guerra inevitável contra
ele. Não era o amor à pátria um belo, natural e bom
sentimento – o amor às tradições, à cultura, à língua do povo
no seio do qual se nasce -, um amor que se dá tão bem com a
simpatia e a admiração por outras variações do humano, pelo
charme intelectual e pelas contribuições culturais de outras
nacionalidades? O que esse avesso de Midas, o nacional-socialismo,
fez do ouro do patriotismo? Ora, sujeira, naturalmente. Arrogância
estúpida, furiosa insolência racial, autoendeusamento maníaco e
assassino, ódio, violência e loucura, foi nisso que ele transformou
o amor à pátria. E sobre a completa infâmia, sobre a mais
insensata degeneração do nacionalismo alemão ele quer construir a
'Nova Ordem', a Europa.
Europa!
Ele está quase nos fazendo perder o gosto pela ideia de 'Europa':
sim, ele mutilou essa ideia como nenhuma outra. 'A Europa quer se
tornar una', disse Nietzsche. 'Nós, os bons europeus' – essas
palavras são dele, assim como as palavras sobre a 'divisão da
Europa em pequenos Estados', divisão que precisa acabar. A noção
de 'Europa' era para nós querida e cara, algo natural para nosso
pensamento e nosso querer. Era o contrário da estreiteza
provinciana, do egoísmo limitado, da brutalidade nacionalista e da
falta de educação; significava liberdade, amplitude, espírito e
bondade. 'Europa', isso era um patamar, um padrão cultural: um livro
ou uma obra de arte eram bons se alcançavam o espaço europeu: só
se podia ser um bom e distinto alemão quando se era um europeu. O
nacional-socialismo tomou a coisa para si. Ele também diz 'Europa' –
mas da mesma maneira que diz 'revolução' ou 'paz' ou 'pátria'. Não
é a Alemanha que deve se tornar europeia e sim a Europa que deve se
tornar alemã. Sob a desesperada resistência dos povos, banhado em
sangue, cercado de lamentos e maldições, insensível diante de um
ódio que nenhum povo da Terra jamais teve de experimentar, o nazismo
trabalha para fazer da Europa um apêndice da Alemanha monopolista,
um apêndice sem importância, castrado, intelectualmente degradado,
apenas esparsamente povoado por raças exploradas de escravos – um
'protetorado' alemão no sentido mais desonroso da palavra.
No
'protetorado' da Tchecoslováquia, quase todas as universidades e
escolas médias foram fechadas, bibliotecas e laboratórios,
saqueados. Nas escolas, não se pode aprender nada de história
tcheca, mas língua alemã e ideologia nazista têm 16 horas
semanais. Língua tcheca está sendo morta: é proibida na
administração, na justiça, na constituição das leis. Uma guerra
de extermínio assola as populações cujos territórios são
atravessados pela máquina de conquista. Em breve, não haverá mais
poloneses no território anexado, que se chama 'Warthegau'.
Aqueles nos Balcãs que não podem realizar trabalhos forçados são
abandonados à própria sorte. A Grécia passa fome e morre. Romênia,
Finlândia e Hungria sangram nos campos de batalha, enquanto os
iugoslavos são massacrados em suas terras. Os holandeses são
'transferidos'. O Departamento e Polícia Racial trabalha harmoniosa
e efetivamente com os comandos assassinos da Gestapo. A
população da França deve e irá diminuir para 20 milhões. Em
Paris, a vida noturna é 'encorajada'. Os nazistas só têm de Paris
essa ideia de 'vida noturna'. É uma ideia bruta, e a ideia que ele
tem da Europa como um todo, a maneira como pensa nela, como cuida
dela e a ama, aparece na resposta que um oficial alemão do Alto
Comando deu ao adido militar mexicano em Berlim que havia perguntado
o que os nazistas iriam fazer para resolver o problema da fome e das
revoltas na Europa: 'Toda a Europa pode morrer de fome', disse o
alemão, 'desde que o nosso exército esteja suficientemente
abastecido. Preferimos exterminar toda a população civil a
capitular.' Palavras de um homem, palavras de um bom alemão europeu.
Será que foram pronunciadas no momento em que , em Weimar, se reunia
o Congresso de Escritores Europeus, organizado por Goebbels, sob a
presidência do pobre Hans Carossa e com participação de toda
espécie de escritores quisling (i.e. 'colaboracionista') e
empregados literários colaboracionistas do Norte , do Sul , do Leste
e do Oeste?
A
Europa de Hitler é uma farsa macabra como esse congresso de
escritores – uma horrível inversão e aviltamento de uma ideia
madura que há tempos espera sua concretização. Um dia será
realizada, mas, Deus queira, não no estilo vil dos nazistas. Uma
obra geral de restauração espiritual terá de começar quando
Hitler for derrotado – já deve começar agora para que ele seja
derrotado. Será preciso restaurar as ideias de socialismo, de
revolução, de paz, de amor à pátria, mutiladas pelo gorila Midas.
Será preciso restaurar, acima de tudo e ao mesmo tempo, a ideia de
'Europa', que era e precisa se tornar outra vez uma ideia de
liberdade, de honra dos povos, de simpatia e de cooperação humana
no coração dos homens bons.”
pp.
99-104
Trad.
Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. RJ: Jorge Zahar, 2009.
Seleção
: LdeM
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info:
sobre
o Reichsgau Wartheland
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