sábado, 3 de setembro de 2011

mais discursos de Thomas Mann



Thomas Mann

Ouvintes Alemães

Discursos contra Hitler (1940-1945)

trad. Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick




Agosto de 1941


Ouvintes alemães!

Há uma polêmica no mundo sobre se é realmente possível diferenciar o povo alemão das forças que hoje o dominam e sobre se a Alemanha é mesmo capaz de se integrar de forma honesta a uma ordem das nações nova e socialmente desenvolvida, baseada na paz e na justiça, ordem que deverá resultar dessa guerra. Se me perguntassem, eu responderia assim:


Admito que isso que se chama de nacional-socialismo tem raízes profundas na vida alemã. É a forma virulenta de degeneração de ideias que sempre trouxeram em si o germe da corrupção assassina, ideias de modo algum alheias à boa e velha Alemanha da cultura e da formação. Aí elas viviam nobremente, chamava-se 'romantismo' e deixaram o mundo fascinado. Pode-se muito bem dizer que elas decaíram, que estavam destinada a decair, visto que foram desembocar num Hitler. Somadas à incrível adaptação da Alemanha à idade da técnica, elas formam hoje uma mistura explosiva que ameaça toda a civilização. Sim, a história do nacionalismo e do racismo alemão que resultou no nacional-socialismo é longa e terrível; ela vem de longe, é interessante no início e se torna cada vez mais vulgar e abominável. Mas confundir essa história com a própria história do espírito alemão e amalgamá-las numa só é pessimismo crasso e seria um erro perigoso para a paz. Sou, e assim respondo aos estrangeiros,otimista e patriota o suficiente para acreditar que a Alemanha que eles amam, a Alemanha de Dürer e Bach e Goethe e Beethoven, terá um longo fôlego histórico. A outra vai perder o fôlego – logo, logo: não se deve confundir seu bufar atual com um fôlego poderoso. Ela já se esgotou ou está em vias de esgotar, justamente no 'Terceiro Reich', que, como desnudamento de uma ideia através de sua concretização, representa algo intransponível e totalmente fatal. Exatamente nisso repousa toda a esperança. […]”

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Transmissão especial
Agosto de 1941


Ouvintes alemães!

O maior bem moral que se pode fazer ao povo alemão é contá-lo entre os povos oprimidos. Pois qual será o veredicto sobre a Alemanha e que esperanças se pode ter quanto ao seu futuro se os crimes praticados sob seu atual regime forem cometidos com livre-arbítrio e com a consciência clara? Vocês que escutam a voz da liberdade, uma voz que vem de fora, evidentemente se sentem membros de um povo oprimido, e o simples fato de ouvirem já é um ato de resistência espiritual contra o terror de Hitler e a sabotagem espiritual representada pela aventura sangrenta e interminável em que ele os lançou. Na Rússia, os jovens alemães sangram até a morte, aos milhões, seus déspotas admitem que essa única campanha vai adentrar o inverno e, enquanto isso, crescem as forças quase inesgotáveis do exército oponente em um mundo que queria paz, que só pensava em paz, e que no princípio esteve quase indefeso diante da máquina de guerra alemã construída ao longo de sete anos. É de se temer o que acontecerá com a Alemanha se a guerra prosseguir por mais um ano, dois anos – e ela vai continuar, pois nem sequer vocês mesmo ainda acreditam que vão derrotar a maioria da humanidade, maioria que se opõe aos planos de Hitler. Alemães, não deixem as coisas chegarem ao extremo! Vocês mesmos deveriam se livrar do governo infame, governo que os degrada indizivelmente e em cujas mãos vocês caíram por conta de um destino sombrio; vocês deveriam provar aquilo que o mundo ainda se esforça para acreditar, que o nacional-socialismo e a Alemanha não são uma e a mesma coisa. Se vocês seguirem Hitler por toda parte até o fim, então crescerá um afã de vingança que encherá de pavor todos aqueles que simpatizam com a Alemanha. Vejam como os povos oprimidos da Europa se armam contra o mesmo inimigo que também oprime vocês. Vocês querem ser inferiores a eles, ter menos caráter, ser mais covardes que eles? Pensem que a ferramenta para a escravização do mundo é obra de suas mãos e que Hitler não pode levar adiante sua guerra sem a ajuda de vocês. Neguem a ajuda de suas mãos, não contribuam! Fará uma enorme diferença para o futuro se forem vocês mesmos, alemães, a eliminar o homem do terror, esse Hitler, ou se isso acontecer por força externa. Só se vocês mesmos se libertarem terão direito a participar da ordem mundial justa e livre que está por vir.


...


Setembro de 1941


Ouvintes alemães!

Em sua magnífica História da Guerra dos Trinta Anos, Schiller conta como os inimigos do cavaleiro Gustav Adolf espalharam propositalmente terríveis boatos sobre seu modo cruel de guerrear, boatos que não podiam ser refutados inteiramente nem pelos exemplos brilhantes de humanidade que o rei dava. “temia-se”, diz Schiller “que os outros nos fizessem o que sabíamos que faríamos em caso semelhante.” não é essa a exata definição do motivo pelo qual o povo alemão acredita ter de lutar até o mais extremo nesta guerra ilimitada e impossível de ser vencida, suportar infindáveis sofrimentos e ter de seguir seus líderes desesperados sempre mais além, até sabe Deus que fim? O povo alemão teme, caso abandone seus líderes, ter de sofrer isso que ele sabe que os nazistas, em caso de vitória, vão impingir aos outros: aniquilação. A propaganda de Goebbels grita isso todos os dias em seus ouvidos: vocês têm de vencer ou serão aniquilados. Vocês podem escolher apenas entre a vitória total ou a queda.


Mas primeiro, alemães, vocês deveriam pensar que uma liderança que leva seu povo até a beira do abismo de semelhante alternativa – subjugar o mundo ou morrer – é uma liderança  de aventureiros infames. E, segundo, deveriam pensar que a concepção da aniquilação dos povos e do extermínio das raças é uma ideia nazista – ela não é natural nas cabeças das democracias. O que será e tem de ser aniquilado para proteger a humanidade da escravidão mais repugnante que já violentou a face da Terra é o regime nazista, ou seja, Hitler e seus cúmplices, mas não o povo alemão. É pura loucura esperar que a Inglaterra, que em meio à guerra realiza talvez a mais significativa revolução social de sua história, e os Estados Unidos de Franklin Roosevelt cultivem intenções de aniquilamento de qualquer espécie contra o povo alemão, seja aniquilamento econômico, político ou diretamente físico. Essas nações e seus homens de Estado sabem que o mundo se encontra em uma crise que é usada por Hitler para uma campanha de conquista e escravização, crise que, na verdade, deve conduzir a humanidade a um patamar mais alto de maturidade e emancipação social. Eles não desejam nada além de ganhar a Alemanha, que é indispensável para uma ordem dos povos realizada na liberdade, para essa nova ordem nascida do espírito de uma democracia rejuvenescida. Além disso, o significado principal do encontro do Atlântico entre Churchill e Roosevelt repousa no fato de os Estados unidos assumirem uma corresponsabilidade na paz por vir – e quem pode acreditar que uma paz assinada em Washington terá a mais remota semelhança, sob qualquer aspecto, com uma paz ditada pelos nazistas? [...]”


(grifos meus)



Thomas Mann

Ouvintes Alemães

Discursos contra Hitler (1940-1945) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009

trad. Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick



(Entre 1940 e 1945, a convite da rádio BBC, Thomas Mann dirigiu-se do exílio a seus conterrâneos alemães em breves discursos sobre a guerra. Mês após mês o escritor procurou transmitir-lhes confiança, comentou a realidade da guerra e conclamou-os a reverter a situação que haviam permitido e a se engajar na luta contra Hitler.)


mais em


para ouvir
(discurso de novembro/ 1941, etc)



LdeM

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