quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Apelo de T. Mann ao povo alemão : Nazismo é o fim dos direitos humanos



Aqui o escritor Thomas Mann fala ao povo alemão...

Ouvintes alemães!



Janeiro de 1942

Ouvintes alemães!


A notícia soa incrível, mas minha fonte é segura. Em inúmeras famílias judias holandesas, assim me contaram em Amsterdam e outras cidades, reina um luto profundo por filhos que tiveram mortes horríveis. Quatrocentos jovens judeus holandeses foram levados para a Alemanha para servir de objetos de pesquisa com gás venenoso. A virulência dessa arma nobre e tão genuinamente alemã, uma verdadeira arma de Siegfried, foi comprovada com os jovens sub-humanos. Eles estão mortos – morreram pela 'nova ordem' e pela engenhosidade bélica da raça de senhores. Para isso, até que serviram. Eram só judeus.


Repito: a história soa incrível, e por toda parte no mundo muitos vão se recusar a acreditar nela. Ainda hoje há fortes traços daquela incredulidade que causou tantos sofrimentos amargos aos exilados durante todos esses anos: a relutância em acreditar na verdadeira natureza do nacional-socialismo, tomá-la por humanamente possível: a disposição, para não dizer a tendência, de considerar essas histórias como fábulas de horror continua amplamente difundida, para a vantagem dos inimigos. Mas não são apenas histórias: são História. Os nazistas estão conscientemente fazendo história com suas ações, e o teste com gás nos 400 jovens judeus é um ato histórico consciente e demonstrativo, uma expressão instrutiva e exemplar do espírito e do caráter da revolução nacional-socialista, que só se compreende ao perceber a disposição moral para esses atos como uma conquista revolucionária. É nessa disposição recorrente – recorrente ao longo dos milênios – que consiste a revolução nacional-socialista: ela não produziu outra coisa nem vai produzir. Não se deve esquecer que no início dessa guerra, que não começou em 1939, mas em 1933, está a abolição dos direitos humanos.


'Os direitos humanos estão abolidos', informou então o dr. Goebbels no Palácio de Esportes de Berlim, e milhares de pobres-diabos urraram com aplausos lamentáveis e absurdos. Foi uma proclamação histórica, o fundamento essencial de tudo isso que a Alemanha nazista inflige hoje a todos os povos, incluindo o próprio : a constatação de uma conquista revolucionária que significa a abolição de todos os progressos morais feitos pela humanidade ao longo de milhares de anos – não apenas os progressos da Revolução Francesa, mas também os efeitos do cristianismo, efeitos suavizantes, civilizadores, aguçadores da consciência humana. O conteúdo, a nova doutrina e alção, a teoria e a prática da revolução nacional-socialista é a bestialidade – só isso; e seu produto é a Europa de hoje: uma região quase exterminada por fome e epidemias que, se a guerra de Hitler durar mais alguns anos, vai se transformar de repasto para os lobos.


É extremamente difícil imaginar a convivência do povo alemão com os outros povos depois da guerra – um assunto que causa preocupação constante e perplexidade. Sempre houve guerras, e as nações que as empreenderam sempre causaram muitos danos umas às outras. Graças à memória curta das pessoas, isto foi sempre enterrado e rapidamente esquecido. Desta vez, será diferente. O que a Alemanha faz, o que inflige de desgraça, miséria, desespero, decadência, destruição moral e física à humanidade ao praticar a filosofia revolucionária da bestialidade é uma tal medida, é tao revoltante e desesperadamente inesquecível, que não se pode prever como nosso povo poderá no futuro viver como igual entre iguais com os povos irmãos da Terra.


Quanto mais essa guerra durar, mais desesperado, mais enredado esse povo estará na culpa, e ela só dura porque parece a vocês muito tarde para parar; porque vocês sentem que muita coisa aconteceu para que possam voltar atrás; porque o horror toma conta de vocês quando pensam no extermínio, na vingança, na reparação. Vocês pensam que têm de vencer para que a revolução da bestialidade se espalhe por todo o mundo e sob a influência seja possível um acordo sinistro entre vocês e o resto do mundo. Mas isso não pode acontecer. Vocês podem ver como seus olhos que o mundo está decidido a fazer o impossível para evitar o destino de encontrar vocês nas bases da bestialidade, e a força do desespero de vocês não está à altura da vontade de três quartos da humanidade.


Vocês não precisam vencer, por isso vocês não podem. Vocês precisam se purificar. As reparações que vocês fazem tudo para evitar têm de ser obra de vocês mesmos, a obra do povo alemão, da qual seu exército, que logo estará desmoralizado e exausto, é apenas uma parte. Essa obra tem de vir de dentro – pois de fora podem vir apenas a vingança e o castigo, mas nunca a purificação. Sempre contradigo aqueles que recomendam uma educação correcional externa para o povo alemão depois que o hitlerismo cair. Toda transformação, digo a eles, deve ser empreendida pelo próprio povo alemão, é coisa exclusiva dele. Aqueles dentre vocês para quem meu nome ainda significa alguma coisa sabem bem que não sou nenhum revolucionário, nem homem de barricadas, nenhum instigador de atos sangrentos por natureza. Mas também conheço o suficiente das leis morais do mundo e sinto por elas respeito o bastante pata dizer a vocês e anunciar com segurança: uma depuração, uma purificação e uma libertação devem e vão acontecer na Alemanha, tão radicais e tão determinadas que estejam à altura de atos criminosos nunca antes vistos no mundo. Devem e vão acontecer, digo eu, para que o grande povo alemão possa olhar a humanidade outra vez nos olhos e estender a mão para ela, com gestos livres, em sinal de reconciliação.

pp. 71-74


In: MANN, Thomas. Ouvintes Alemães. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. trad. Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick.


seleção by LdeM



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http://www.youtube.com/watch?v=Qb8yUcLKaUM

http://www.youtube.com/watch?v=ngju-5ZQ_dg



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