terça-feira, 20 de agosto de 2013

Bombardeio de Hamburg - 1943




Incêndio de Hamburg

Em Hamburgo, as condições também se assemelharam às de um laboratório. A arma expandiu-se livremente, e não apenas, como outrora, dentro dos limites permitidos pelo defensor. Mas a incrível destruição não teria ocorrido sem a ajuda do clima, que foi considerado o agente principal.
 

Em Pforzheim, fazia muito frio; em Hamburgo, ao contrário, há uma década não se via tanto calor e secura. Em pleno verão, a noite de 27 para 28 de julho foi abafada, com temperaturas entre vinte e trinta graus. Da combinação de clima, mistura incendiária, colapso defensivo e estruturas em blocos, resultou o efeito subentendido no codinome ‘Gomorra’ que Harris atribuíra à operação. Tal como Abraão, no Capítulo 19 do Gênese, ele olhou para a cidade pecaminosa ‘e eis que viu a fumaça subir da terra, como a fumaça de uma fornalha’. Foram queimadas entre quarenta e cinquenta mil pessoas; setenta por cento dessas mortes ocorreram no centro, onde arma atingiu uma letalidade de 5,9 por cento. Somente nas ruas residenciais de Hammerbrook, morreram 36 em cada cem habitantes. Sete mil crianças e jovens perderam a vida; cerca de dez mil ficaram órfãos.


Os estreitos pátios internos se transformaram em calabouços ardentes, onde os prisioneiros, sem saída, esperavam pela morte. No zênite do turbilhão, a simples irradiação de calor queimava as casas de uma só vez, de cima a baixo, reduzindo-as a uma língua de fogo. Como uma gigantesca bomba, as rajadas de vento sugavam todo o oxigênio dos porões das casas. Em seis horas de turbilhão, dois bilhões de toneladas de ar puro devem ter sido consumidas na chaminé de sete quilômetros de altura, ao redor da qual a velocidade horizontal do vento chegou a 75 metros por segundo. Sob tais condições, as pessoas perdiam o equilíbrio. Árvores de raízes profundas foram arrancadas, ficando apoiadas sobre a copa. Álamos foram vistos vergados até a horizontal. As equipes de resgate que recolheram os restos dos mortos por asfixia ou carbonização tiveram de esperar dez dias, para que os escombros esfriassem.
[...]

Uma arma com tamanho poder é uma arma estratégica, e deve decidir a guerra. Se não o faz, prolonga o assassinato em massa. Após o gabinete de Churchill ter passado três anos garantindo o aniquilamento do poder militar adversário, o fato de ter finalmente comemorado o extermínio de quarenta mil civis hamburgueses devia ter alguma serventia. A melhor opção, acreditava-se, seria transformá-lo em pretexto para a ‘hamburguização’ de Berlim. Um golpe semelhante contra a capital haveria de provocar a queda do regime e o fim das hostilidades, nunca esquecendo a premissa implícita do ‘bombardeio moral’. Harris citava como exemplo, até o final dos seus dias, o bombardeio de Hiroshima.” [pp. 109-110]



A cidade de Hamburgo, seis vezes maior do que Kiel, foi reduzida, depois de 213 ataques, a uma montanha de escombros oito vezes maior. Cento e doze desses ataques ocorreram em 1940 e 1941, matando 751 pessoas. Os 56 ataques de 1944/45, por seu turno, vitimaram 5.390 pessoas. deixando de lado os ataques incendiários do verão de 1943, as baixas fatais impostas pelas forças aéreas anglo-americanas, de 0,31 por cento da população anterior à guerra, teriam sido bem diminutas. Considerando que as baixas do verão de 1943 tivessem alcançado as mesmas cifras resultantes da carga lançada em 1944, o índice total subiria para 0,57 por cento. Ainda assim, em face do 1,7 milhão de bombas despejadas, à razão de uma por habitante, é forçoso admitir uma vitória da defesa aérea hamburguense. Mais do que isso não se conseguiu em lugar algum, durante a Segunda Guerra Mundial. Salvo três dias, entretanto, a visão posterior dos cinco anos de guerra aérea sobre Hamburgo sempre foi superficial.


Os quarenta mil mortos no ataque de julho de 1943 representam, ao lado das vítimas de Dresden, Hiroshima e Nagasaki, o maior castigo já imposto à criatura pelo poderio bélico. Não por rios de sangue derramados, mas sim pela maneira como os seres vivos foram alijados, com um sopro mortal, da face da Terra. Nas guerras incendiárias e nucleares corre pouco sangue.


Médicos do serviço de salvamento de Hamburgo relataram que centenas de pessoas surpreendidas pelo furacão das correntes de ar quente foram encontradas nuas, caídas no meio da rua. A pele tinha uma tonalidade escura, os cabelos estavam bem conservados e as mucosas do rosto, ressecadas e incrustradas. Os que fugiam dos porões para as ruas se detinham depois de alguns passos, deitavam no chão e tentavam evitar, com os braços erguidos sobre a cabeça, a inspiração do ar quente. Nessas horas, as crianças eram mais vulneráveis que os adultos.” [pp. 188-89]


Em Hamburgo, a maioria das vítimas não morreu nas ruas, mas sim no inferno secundário dos seus porões, governados ora por umas, ora por outras leis da pirotecnia. Passado algum tempo, os porões sugavam o calor externo, funcionando como crematórios, ou então se enchiam, de maneira imperceptível, de gases venenosos. A causa mortis mais frequentemente atestada pelas autoridades médicas de Hamburgo, com uma incidência de setenta a oitenta por cento, foi o envenenamento por gás.


O turbilhão que se formou nos bairros operários de Hammerbrook, Hamm e Borgfeld pouco afetou o Centro Histórico, entre a Estação Ferroviária Central e a Câmara Municipal, que se manteve até o centésimo quinquagésimo sétimo ataque, no dia 18 de junho de 1944, conduzido por oitocentos bombardeiros norte-americanos que tinham como objetivo a fábrica da Blohm & Voss. A VIII Força Aérea [da USAF] lançou suas bombas da altitude de sete mil metros, e elas caíram um quilômetro ao norte do local previsto. Alguns segundos de retardo transportaram o impacto para um alvo totalmente diverso. Nesse caso, em vez da fábrica, quem ruiu sobre os seus alicerces foi a estátua de Gotthold Ephraim Lessing, na praça do Gänsemarkt, e outros alvos de somenos importância para os norte-americanos, como a Jacobikirche, incendiada. Porém o órgão construído por Arp Schnitger, com uma parte murada e outra subterrânea, sobreviveu até mesmo ao tiro certeiro que pôs abaixo a nave central da basílica, no dia 22 de março de 1945.


Apesar de Hamburgo ter sido responsável por 43 dos quatrocentos milhões de metros cúbicos de escombros deixados pelas bimbas na Alemanha, a imagem da cidade não foi tão desfigurada, a ponto de torná-la irreconhecível, como em Colônia, Nuremberg, Darmstadt, Kassel, Würzburg e Düren. A cicatriz que ela carrega provém das três horas de duração do primeiro turbilhão, registrado durante a noite de 28 de julho, que tornaria real a extraterritorialidade do aniquilamento, desvinculado do tempo, do espaço e da confiança na proteção do mundo, permitindo que fosse suprimida, de uma hora para outra, qualquer possibilidade de vida. Entre os verões de 1943 e 1945, período que abarca Hamburgo, Tóquio e Hiroshima, essa possibilidade passou a existir.


Com 83 mil mortos, Tóquio detém o maior número de vítimas, falecidas durante a noite de 8 para 9 de março de 1945. Hiroshima, cuja população era cinco vezes menor, teve 80 mil mortos. Hamburgo tinha três vezes mais habitantes que Hiroshima e teve um terço a menos de baixas. Nas três cidades se formaram turbilhões, e a maioria das vítimas morreu em decorrência do fogo.” [pp. 190-91]



Fonte: FRIEDRICH, Jörg. O Incêndio. [Der Brand] Trad. Roberto Rodrigues. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.



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terça-feira, 13 de agosto de 2013

Preparação da FEB - Brasil na SGM










Capítulo XVI – Primeiro aniversário da guerra

No dia 22 de agosto, o movimento patriótico promoveu, em todo o país, comemorações do primeiro aniversário da entrada do Brasil na guerra. Contou com o apoio das emissoras de rádio dos estados, em número de 98 estações, que prepararam programas especiais com noticiários, crônicas cívico-patrióticas, hinos, marchas e radioteatralização dos episódios mais marcantes daqueles dias dramáticos de agosto de 1942. Também foi transmitida pelo DIP [Departamento de Imprensa e Propaganda], em cadeia para todo o Brasil, uma missa campal celebrada na praia do Roussel, com a presença do presidente da República, ministros de Estado e demais autoridades civis e militares. A BBC de Londres irradiou um programa especial de saudação ao nosso povo.” (p. 191)

Segundo aniversário da entrada dos EUA na guerra – “O movimento patriótico preparou-se para comemorar, a 7 de dezembro de 1943, o segundo ano da entrada dos Estados Unidos na guerra, com grandes manifestações de massa, acobertado pelo prestígio deste país junto ao governo brasileiro. Queria, assim, interromper a proibição de manifestações populares, nas ruas e nas praças públicas, que a chefia de Polícia federal vinha mantendo em quase todo o Brasil.

A Liga de Defesa Nacional, a União Nacional dos Estudantes, a Associação Brasileira de Imprensa e a Federação das Indústrias do Brasil tinham programado uma grande manifestação antinipônica e antifascista, no Rio, em frente à Embaixada Americana, mas a mesma foi proibida pela polícia.

Com uma nota à imprensa, essas entidades justificaram a suspensão das homenagens
levando em consideração as palavras do Presidente Roosevelt, quando proclamou o dia da traição de Pearl Harbor como o Dia da Infâmia, impróprio a qualquer manifestação que envolva entusiasmo cívico e só merecedor do esquecimento por parte dos que prezam a dignidade humana, reafirmando, no entanto, seus sentimentos de enérgica repulsa ao Eixo e de fraternal e incondicional solidariedade ao governo e povo dos Estados Unidos. (fonte: jornal Estado da Bahia [Agência Nacional], Salvador, Bahia, edição de 06/12/43.)” (p. 198)

Capítulo XVII – A oposição e a violência da ditadura – “Latente no país desde a implantação do Estado Novo, o movimento de oposição à ditadura ficou cindido depois da declaração de guerra. Enquanto comunistas, antifascistas, grande parte do movimento estudantil e quase a totalidade do movimento sindical e das classes produtoras defendiam a política de união nacional contra o nazi-fascismo sem Getúlio, tendo como foco principal parte do movimento estudantil (Centro XI de Agosto) de São Paulo e das correntes liberais e conservadoras daquele estado e de Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul e outros.

Esses setores da opinião pública nacional não haviam compreendido que a vitória dos aliados e o envio da Força Expedicionária Brasileira aos campos de batalha levariam seguramente ao fim do regime ditatorial.” (p. 201)

Finalmente, sai o Manifesto dos Mineiros, datado de 24 de outubro de 1943, para marcar os ideais da Revolução de 1930; na verdade, o que faz é defender toda uma ideologia da classe dominante, liberal externamente e conservadora na essência:

Queremos alguma coisa além das franquias fundamentais, do direito de voto e do habeas-corpus. Nossas aspirações fundam-se no estabelecimento de garantias constitucionais, que se traduzam em efetiva segurança econômica e bem-estar para todos os brasileiros, não só das capitais, mas de todo o território nacional.

E conclui:

Se lutamos contra o fascismo, ao lado das Nações Unidas, para que a liberdade e a democracia sejam restituídas a todos os povos, certamente não pedimos demais reclamando para nós mesmos os direitos e as garantias que as caracterizam.

Assinam o manifesto Adauto Lúcio Cardoso, Afonso Arinos de Mello Franco, Afonso Pena Junior, Djalma Pinheiro Chagas, Mário Brandt, Milton Campos, Virgílio de Mello Franco, Pedro Aleixo e muitos outros. A sua publicação clandestina alcançou um enorme sucesso. Mas o governo quer prender seus signatários e não tem força, pois todos são pessoas de destaque (o contrário se dá com comunistas e estudantes); assim, ele pressiona para prejudicar cada um individualmente; os que trabalham em cargos oficiais são despedidos, os outros perdem seus empregos.” (p. 203)

Mais sobre o Manifesto dos Mineiros em


Capítulo XVIII – Preparação da FEB – “A decisão do governo brasileiro em enviar um corpo expedicionário à Europa foi muito lenta. Embora o presidente Vargas tivesse assumido junto ao presidente Roosevelt, no encontro de Natal, em janeiro de 1943, o compromisso de o Brasil participar da guerra com um contingente de tropas, ele foi boicotado pelo próprio governo.
Além da resistência militar, de ordem interna, a essa importante decisão, ocorria uma situação muito delicada, de ordem externa: o comando do Exército dos EUA guardava algumas reservas sobre a conveniência da participação do Exército brasileiro na guerra. As restrições ao projeto militar do Brasil eram ainda mais fortes por parte do governo britânico, que mantinha, a esse respeito, um posicionamento abertamente contrário.
Mas ‘a pressão da sociedade brasileira foi muito forte, o que levou Getúlio a transformar o envio da FEB numa espécie de pedra de toque de seu Governo’ [fonte: William Waack, As duas faces da glória. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, p. 27].
Para encaminhar as negociações, em agosto de 1943, o presidente Vargas decidiu mandar aos Estados Unidos, a convite deste país, o ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, chefiando uma delegação militar. Com essa viagem, Getúlio Vargas desejava atingir dois objetivos. O primeiro, da mais alta relevância, seria dar um passo seguro para a definição do magno problema relativo à organização de uma força expedicionária, envolvendo e comprometendo definitivamente seu vacilante ministro da Guerra. O segundo, de menor importância, visava superar a crise interna que se esboçara no final do mês de julho entre os generais Dutra e Manoel Rabello, provocada pela contundente entrevista concedida por este à revista Seiva, na qual criticava abertamente a condução do esforço de guerra pelo ministro Eurico Dutra.” (pp. 211-12)

A designação do general João Batista Mascarenhas de Moraes para organizar e instruir a 1ª Divisão de Infantaria do Exército somente foi efetivada a 28 de novembro de 1943. A partir desta data, acelerou-se o projeto de preparação da força expedicionária.” (p. 213)

Para enfrentar as dificuldades de adaptação dos nossos soldados ao modelo norte-americano, o Exército brasileiro enviou vários oficiais a estágios nos EUA. E entre os primeiros encontravam-se os generais Euclides Zenóbio da Costa, Canrobert Pereira da Costa, Oswaldo Cordeiro de Farias e Falconiére da Cunha.
O general Mascarenhas de Moraes foi também visitar as prováveis frentes de combate onde deveriam atuar as forças brasileiras. Sua comitiva partiu a 6 de dezembro de 1943 e fora integrada pelos seguintes oficiais brasileiros e norte-americanos: major general J.G. Ord e capitão Vernon Walters; general-de-brigada Anor Teixeira dos Santos, coronel-aviador Vasco Seco, coronel médico Dr. Emanuel Marques Porto, tenente-coronel I. E. Sebastião de Carvalho, tenente-coronel Ademar de Queiroz, tenente-coronel-aviador Nelson Wanderley, major Aguinaldo José Senna Pinheiro, major-aviador Rube Canabarro, major-aviador Presse Bello e capitão Paulo Ferreira Pará. Estiveram no Norte da África e na Itália, percorrendo nestes países as frentes de combate e entrando em contato com os chefes militares aliados daquele Teatro de Operações [fonte: Marechal J.B. Mascarenhas de Moraes, A FEB pelo seu comandante. São Paulo, Instituto Progresso Editorial S.A., 1947, p. 28].” (p. 214)

A FEB como projeto militar e político – No início de 1944, ao contrário do que ocorrera quando foi declarada a guerra, em agosto de 1942, as forças armadas brasileiras estavam seriamente empenhadas na organização de um corpo expedicionário e queriam vê-lo na Europa, ainda a tempo de participar da abertura da segunda frente. O envio da FEB transformou-se, no final de 1943, num objetivo de excepcional importância política para o governo do presidente Vargas, em torno do qual havia total unanimidade, tanto no âmbito do aparelho governamental como no da opinião pública. A influente facção pró-germânica do governo já estava convencida de que a vitória pendia para os aliados, sendo de grande interesse para o Brasil a contribuição do Exército brasileiro para alcançá-la, estando ela no comando. Somente a quinta-coluna persistia no seu trabalho de espionagem e sabotagem ao esforço de guerra.

Os primeiros dias do ano foram marcados por intensa movimentação militar, no sentido de se visitar e conhecer o terreno onde a tropa iria lutar.” (pp. 219-20)

Como EUA e Grã-Bretanha viam a FEB – Inicialmente, o governo dos EUA não desejava a participação militar do Brasil na África ou na Europa. Quando o presidente Vargas, em janeiro de 1943, durante o encontro de Natal, externou ao presidente Roosevelt o propósito do Brasil em contribuir com forças militares para o Teatro das Operações, este não tomou a declaração ao pé da letra. Por outro lado, Getúlio Vargas, ao proclamá-la, não o fazia com sinceridade. Em janeiro de 1943, a guerra ainda não estava decidida a favor das ações Unidas e tudo indicava que governo e Exército jamais tomariam qualquer medida para a entrada do Brasil no conflito.

Mas, em janeiro de 1944, o governo Vargas estava absolutamente empenhado no envio de uma Força Expedicionária à Europa, e o governo norte-americano o apoiava inteiramente, apesar das restrições dos chefes de suas Forças Armadas. [...]

Com a posição dos governos ditatoriais da Argentina e da Bolívia fazendo uma coligação de clara tendência pró-Eixo, e com a ascensão do presidente Farrel da Argentina e do ministro da Guerra Juan Perón, o governo norte-americano chegou à conclusão de que deveria enfrentar aquela coalização, fortalecendo as defesas militares brasileiras na fronteira com o país platino.” (pp. 221-22)


Fonte: FALCÃO, João. O Brasil e a 2ª Guerra. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.



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Senta a Pua

FEB na guerra



A cobra fumou


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Resistência Francesa - Deportações - testemunho





Resistência Francesa

Deportações


Vários relatos sobre a Resistência Francesa etão disponíveis em várias mídias – livros, vídeos, documentários -geralmente com o foco no panorama histórico, da perspectiva da História, mas aqui temos um relato pessoal, na forma de um diário, tal qual testemunha um Primo Levi (1919-1987), sobre as atrocidades nazistas. Uma voz resistente, mulher que atuou na luta antifascista na França ocupada, que lutou com ânimo nacionalista contra as forças de opressão que não hesitaram em torturar, matar, deportar, condenar à trabalhos forçados.

Aqui apresentaremos alguns trechos da obra Resistência (publicada primeiramente em 1946) da francesa Agnés Humbert (1894-1963), que atuou em imprensa clandestina contra os nazistas, foi presa, sofreu um julgamento ao estilo nazi, e foi deportada para a Alemanha. Vejamos alguns trechos sobre a ocupação da França [em 1940], sobre as prisões [em 1941], sobre a deportação [em 1942] e sobre o bombardeio do III Reich (que, entre 1943 e 1945, danificou a infraestrutura e atingiu a população civil), além dos prisioneiros. (LdeM)



Paris, final de novembro de 1940

O comitê de redação do nosso jornal está formado. Marcel Abraham, Jean Cassou, Claude Aveline. Vildé diz que podemos dispor de três páginas. A primeira será redigida por 'aqueles senhores', os cavalheiros misteriosos que fornecem o papel e garantem o serviço de impressão. O nosso grupo de dez ficará com quatrocentos e quinhentos exemplares. Cabe a nós providenciar uma distribuição meticulosa, sobretudo a pessoas capazes de reproduzi-los. O nome do pato? Vildé sugeriu Libération, mas a ideia nos pareceu um pouco prematura. Decidiu-se (quem? Onde? Ignoramos) que será Résistance. Discutimos tendências políticas. De Gaulle contará com toda a nossa simpatia respeitosa... Devemos ser prudentes e conhecer seu ideal político; ser circunspectos durante algum tempo ao falar desse velho imbecil, o marechal. Todos sabemos quanto vale este Franco em miniatura. No entanto, muitos ainda não abriram os olhos. O futuro se encarregará de esclarecê-los. Mas correremos o risco de prejudicar a nossa causa se os alertarmos de maneira muito brusca. Estamos acumulando, a partir de hoje, documentos sobre o 'velho'. Trechos das Mémoires de Poincaré, Lloyd George e Clemenceau nos serão úteis quando chegar a hora. Nós o ajudaremos a mergulhar na lama onde ele já chafurda... Oh! Montoire! (*)

Devemos redigir o jornal na casa dos Martin-Chauffier, onde reside Claude Aveline no momento. No final do dia, Vildé me disse que Lewitsky virá pegar os 'papeis'. Lewitsky? Isso mesmo, responde Vildé, ele está conosco desde o primeiro dia. Fico contente em saber. Eu o conheço desde que fui trabalhar no palácio de Chaillot. Era sempre a ele que me dirigia quando precisava de alguma informação quanto ao Museu do Homem. Admiro tanto a sua cortesia, aquela cortesia, aquela cortesia inteligente dos russos... Fico felicíssima de saber que ele é um dos nossos!” (p. 28)

(*)Em Montoire-sur-le -Loir se deu o encontro entre Pétain e Hitler para definir a política de colaboração franco-alemã. (N.T.)




Prisão de La Santé, novembro de 1941

Já faz quatro meses que estou na Santé. Os dias se sucedem, silenciosos e quase idênticos. Algumas grandes alegrias, como a entrada dos Estados Unidos na guerra e notícias bem melhores do front russo. Pude ver Yvonne Oddon no pátio. Ela me disse que nosso processo vem sendo adiado de semana a semana. Tempo a ganhar para os homens, que, coitados, não se darão tão bem quanto nós.

Ouvi gritarem no pátio que Jean-Pierre foi executado em agosto. Não posso acreditar nisso. É estranho como a minha mente se recusa a aceitar as más notícias! Elas me parecem inacreditáveis. No entanto... Será possível que d'Estienne d'Orves não mais exista? Que todo o seu heroísmo tranquilo se encerre aqui? Penso nas suas confidências sobre o tratamento odioso que lhe deram em Berlim, para onde o arrastaram assim que foi preso. Os castigos que aguentou por lá, quando ainda sofria um bocado por conta dos ferimentos na cabeça, recebidos por ocasião de sua dramática prisão em Nantes. Eles o puseram numa cela sem colchão, sem mesa nem tamborete, e seu balde não tinha tampa. Só quem já esteve preso sabe o que significa um balde sem tampa numa pequena cela mal arejada. Ele ficou cerca de um mês em Berlim antes que o trouxessem de volta a Paris. No trem para cá, foi instalado na primeira classe, o oficial que o acompanhava lhe ofereceu charutos... Depois, sem motivo algum, ao chegar em Cherche-Midi [prisão na qual a autora ficou detida de abril a agosto de 1941, nota de LdeM] , ficou um mês trancado na solitária antes de ser acomodado em definitivo na cela da qual, para nossa felicidade, conversou tanto conosco.” (pp. 82-83)




Prisão de Fresnes, 17 de fevereiro de 1942

Enfim, o veredicto!

O presidente está pálido, nunca vi um homem tão pálido: ele disse que seu dever de alemão era duro. Hoje, percebe-se nitidamente que suas palavras eram sinceras. Ele sofre por ter que pronunciar uma sentença desse tipo. Estima e admira os homens que vai condenar à morte.

Estamos todos acomodados como no dia das alegações da promotoria. Ele faz sinal para que os liberados deixem a sala. Em seguida, a história é conosco, aqueles que terão uma pena a cumprir: Müller, Jean-Paul Carrier e eu. Depois será a vez dos condenados à morte: Yvonne Oddon, Sylvette Leleu, Alice Simonnet e os sete homens. Jean-Paul Carrier se safa com três anos de reclusão Müller e eu, com cinco. (*)

[…]

O presidente ordena que os três futuros deportados se retirem. Me chama de volta, porém, para me autorizar a aguardar na salinha contígua, a fim de poder, dali a poucos instantes, dizer adeus pela última vez a meus amigos. Pronuncia 'pela última vez', como se acreditasse nisso, mas eu – nós – não acreditamos!”

[...]


(*)Jean-Paul Carrier conseguiu fugir da prisão de Clairvaux e, depois de sete meses em cárceres da França, chegou à África do sul; Mǘller, coitado, foi morto na Alemanha durante um bombardeio aéreo.





Capítulo VII – Os trabalhos forçados

[Prisão de Anrath, março 1942]

Nesta época [início de 1942], os deportados políticos não eram conduzidos diretamente aos campos de extermínio, mas automaticamente enviados para as prisões alemães de trabalhos forçados com os presos comuns, o que explica que a minha experiência, igual à de todos os deportados no início de 1942, seja muito diversa da dos deportados que chegaram à Alemanha depois de nós. O destino destes, coitados, com certeza foi muito pior do que o nosso!” p. 103


[depois de Anrath, prisioneiras conduzidas para Klefeld, “cidade industrial a alguns quilômetros de Anrath. Lá trabalharemos numa fábrica.” p. 107]


Klefeld, 11 de abril de 1942

Por volta de uma da tarde, recebemos uma ordem para nos preparar. Agrupadas em trios no pátio, lá vamos nós, escoltadas por duas guardiãs e dois cavalheiros que, ao que tudo indica, são guardas da fábrica. Nos obrigam a marchar no meio da rua, como soldados. Não consigo falar com Denise; os alojamentos não devem se misturar... Passamos diante de uma loja de roupas femininas, há uma vitrine enorme, me vejo nela. Esta camponesa velha que claudica, calçada com coturnos ridículos e penteada de forma grotesca sou eu... Preciso erguer a mão direita para me convencer de que a imagem que o espelho me devolve é realmente minha … Sim, a velha sou eu, pois a velha no espelho da loja ergue a mão direita... Como eu … Minha aparência é igual à de todas estas mulheres, tão feia e tão miserável quanto a delas. É horrível ser humilhada, andar na rua sob a luz dos sol desse jeito ridículo! As outras mulheres na calçada – as ladies – ostentam belos vestidos, já meio primaveris.... Essa espécie de tristeza que me fecha a garganta é pueril. Não há por que me envergonhar de desfilar assim submissa pelas ruas de Krefeld... Sim, é claro, debato comigo mesma, mas se ao menos tivéssemos, Kate, Denise e eu, as cores do nosso país, um broche que fosse, um tantinho que nos diferenciasse das ladras, das assassinas alemãs com as quais nos confundem... O homem (e a mulher) é realmente um ser medíocre, uma vez que para acalmá-lo – para poupá-lo de uma humilhação aguda – bastam simplesmente três pedacinhos de fita grudados com linha!

[…]

Finalmente, a fábrica. É imensa, cercada de vilas operárias e de outras fábricas. Ao longe, uma grande ponte suspensa. As placas da estrada nos informam que se trata da Adolf-Hitler-Rheinbrücke... A fábrica de tijolos vermelhos engloba vários prédios avantajados, todos muito modernos e esbanjando harmonia. O primeiro pátio é ornado de flores e grama. O prédio principal possui uma torre enorme que me faz lembrar, em escala muito maior, a torre do Palácio Vecchio de Florença... Esqueço a minha aparência física tamanha a felicidade de contemplar algo novo, algo novo que me agrada, porque tudo aqui parece repleto de ordem e harmonia. O pátio em torno do qual as construções se agrupam é sulcado de trilhos – vários vagões de estrada de ferro se encontram ali... Um deles vem da França... 'Homens: 40; cavalos em pé: 8.' Nem homens nem cavalos, mas toneladas das nossas magníficas batatas....São tantas que os alemães andam sobre elas... Por que se incomodar com isso, a troco de quê? Minha mudança de humor é contido quando vejo ao longe, atrás da fábrica, duas grandes estufas... A fábrica tem suas próprias flores... Acho que na França não existe nada semelhante. Mas deveria existir. Todas essas flores dão um aspecto tão alegre, tão vivaz, tão humano a construções racionais e austeras. A fábrica se chama 'Phrix. Rheinische Kunstseide Aktiengeselschaft', mas Kate vai logo dizendo que o nome pelo qual conhecem é mais curto: 'Rheika'.” pp. 110-112




Krefeld, maio de 1942

Só se fala nos russos, seremos substituídos por russos! Serão mulheres ou homens russos? O que será feito de nós? As alemãs inventam histórias inacreditáveis em que o único tema é a libertação. Os russos vão 'soltar' as prisioneiras alemãs. Enquanto isso, os dias passam e não se vê mudança alguma.

À noite, quando saímos da Rheika, cruzamos muitas vezes com o kommando que vai nos render. No mio de todas as prisioneiras, uma chama a minha atenção – uma francesa cujos olhos cintilam. Ela me grita as 'notícias'. Descubro que a nossa compatriota é de Tourcoing. Desconheço tudo a seu respeito, salvo que tem um dinamismo maravilhoso e quer compartilhar a alegria, a alegria de sua natureza feliz, com o mundo inteiro. Um dia é Pétain que partiu para a Argélia, no outro, a Itália que está prestes a entregar as armas e, finalmente, Sikorski que falou de Varsóvia. A prova? Não há mais operários poloneses na fábrica... Voltaram todos para casa. Para o desembarque anglo-americano... basta esperar por esses dias felizes e isso ocorrerá muito em breve. Já não creio nessas notícias, mas meu moral é muito bom. Sei que a guerra não pode durar muito mais tempo e que o hitlerismo será destituído por dentro e por fora. O dia em que os russos atravessarem a fronteira, a revolução eclodirá na Alemanha... Já faz anos que nos dizem que tudo está pronto, armas escondidas, planos elaborados, palavras de ordem que aguardam apenas um sinal para serem enviadas aos quatro cantos do país. Sei disso tudo, e ainda assim as 'notícias' da senhora de Tourcoing me dão prazer. Adoro ver o brilho de seus olhos negros quando ela chega e grita 'Vai tudo muito bem', acentuando misteriosamente o 'muito'...” pp. 118-119


...

Krefeld, maio de 1942


Agora sei direitinho 'bobinar' a seda. Estudo a arte e as formas da sabotagem.

Devemos dar nós chatos, nós de tecelão. Os nós comuns, ao que parece, fazem as máquinas de tecer pularem. Entendi! O interior dos meus carretéis é recheado de nós gordos que causarão problemas, mas o exterior se apresenta perfeito, é o essencial... Ninguém sabe, ninguém viu... Estou bem mais animada agora que sei que nenhum dos meus carretéis presta... Nenhum gerará lucros para o Grande Reich!

As russas chegaram. São ucranianas, todas mocinhas, meninas quase. Naturalmente estamos proibidas de nos aproximar delas, de lhes falar, até mesmo de olhá-las... Apesar de tudo, descobrimos que foram deportadas à força, obrigadas a assinar um contrato de trabalho numa fábrica de … chocolate. E cá estão. Em sua maioria, são lindas. Todas usam o fouland nacional ou o lenço branco em volta da cabeça. Têm a expressão amedrontada de pequenos pardais. As alemãs se empurram para vê-las. Muitas, entre as recém-chegadas, ostentam pequenas cruzes penduradas no pescoço, o que causa enorme estranheza nas alemãs, pois as faz rever as idiotices que lhes contaram sobre a vida na União Soviética.


As russas têm uma etiqueta costurada na roupa, um pequeno retângulo de tecido azul com a palavra 'Ost' em branco. Dá para sentir que se orgulham dessa distinção, dessa pequena distinção que desejo (mentalmente, claro) desde a minha chegada à prisão. As polonesas parecem envergonhadas, ao contrário, do losango amarelo que as obrigam a usar, losango sobre o qual se destaca um 'P' azul escuro. Todos os estratagemas são válidos para livrá-las da marca de sua origem. Por que terão vergonha de ser de onde são? Enquanto enrolo a seda, admiro essas mocinhas da Ucrânia ligadas a seu país, a suas famílias... São tão bonitas, tão puras, tão ingênuas, com suas bijuterias de vintéis e seus pobres vestidinhos. Foram elas que vi em 1939 nos arredores de Kiev, cantando no 'colcoz' (*) a alegria de viver. E agora são escravas...” pp. 119-120


(*)Tipo de propriedade rural coletiva na ex-União Soviética em que os camponeses formavam uma cooperativa e repassavam ao Estado uma parte fixa da produção. (N.T.)




Krefeld, maio de 1942

Ontem à noite houve sinfonia! Um ataque aéreo formidável sobre Colônia [Köln]. Os aviões ingleses ou americanos (não sabemos quais) sobrevoaram Krefeld. Contemplo, ajoelhada na cama, junto à janela, o magnífico espetáculo dos holofotes... Os fachos luminosos se entrecruzam no céu muito claro. De repente, um avião fica aprisionado na luz dos holofotes... Os obuses da Defesa Antiaérea espocam à sua volta. Como uma borboleta enlouquecida, uma borboleta muito alva, o avião faz uma manobra súbita, sobe, desce, evita os obuses e, finalmente, oh! finalmente, escapa do raio revelador. Emito um grito, numa voz selvagem: 'Eles não o pegaram, os canalhas!'

As mulheres ficam muito nervosas com o barulho da Defesa Antiaérea. Além disso, sabem que estamos ao lado da estação de Krefeld – o local não foi propriamente bem escolhido. Não existe abrigo. As guardiãs foram se esconder só Deus sabe onde depois de nos trancafiarem. Se pegarmos fogo, tudo bem. As janelas têm grades... Tento deitar na minha cama, mas alguém chegou primeiro. É a inefável Baker, que me toma nos braços e me chama de sua 'pombinha de açúcar'. A emoção deixou-a terna demais. Com um safanão. Mando que vá procurar noutro lugar aquilo de que precisa esta noite. Finalmente só, pego no sono ouvindo o barulho do intenso bombardeio de Colônia e me pergunto com tristeza quantos seres humanos serão abatidos hoje... No entanto, este massacre tem que acontecer...” pp. 120-121






Krefeld, julho de 1942


Os aviões não vêm apenas à noite. Hoje, foram seis alarmes em pleno dia. Um deles permanece um bom tempo acima de nós. Faz um oito lá no céu... Oito? O que quer dizer este oito? Agosto? O oitavo mês? Haverá algo proveitoso para agosto? Seja o que for, os civis belgas nos garantem que o desembarque prossegue pouco a pouco por todo lado e que os ingleses se aproximam de Amiens... Nenhuma confirmação no lado alemão, e nossas guardiãs angelicais não se mostram assustadas. Se essas notícias fossem verídicas, continuariam tão calmas?

Há um anúncio de grandes mudanças: as russas estão a ponto de render um bocado no ofício de desembaraçar os fios; há prisioneiras em demasia com elas. Além disso, as matérias-primas parecem diminuir, o que nos deixa encantadas. Corremos o risco, assim, de acabar desempregadas. Por outro lado, muitos dos operários livres, belgas e holandeses, querem distância da tecelagem, onde o trabalho é duríssimo. Logo irão nos forçar a substituir esses homens que fogem de um trabalho tão extenuante.” pp. 131-132




Krefeld, 15 de janeiro de 1943

Sem dúvida há mudanças 'lá fora', pois o regulamento, da noite para o dia, se tornou muito mais rígido. Os guardas da fábrica agora andam armados de fuzil. Meu pobre Erb [um dos guardas alemães] tem cara de não saber o que fazer com ele. Um SS acompanha os guardas e vem nos buscar diariamente para nos escoltar ao trabalho. Ele me dá muita pena, pois se parece com Louis Jouvet. É triste vê-lo enfiado neste uniforme! O SS conta as mulheres na saída de casa. A fim de não se confundir, ele nos belisca o braço, de passagem, de preferência machucando a carne.

No meio da sala de máquinas, acabam de construir uma guarita de concreto armado, uma espécie de torre fortificada com seteiras da qual é possível controlar a sala toda com uma simples metralhadora. Uma construção similar também surgiu no pátio e em todas as dependências da fábrica. Estou muito feliz, pois estes sinais são precursores de revolta. Correm rumores de motins...

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Maria B., jovem comunista alemã de um outro turno, acaba de ser enviada para Anrath, para a solitária. Vai se divertir um bocado! Está sendo punida por ter dado a boa notícia do cerco às tropas alemãs na Rússia. Onde terá ocorrido esse cerco? Ninguém sabe ao certo, mas todo mundo fala disso. A alegria me leva a dançar, corremos de uma máquina a outra; umas ouviram dizer que se trata de dez divisões, outras, de cem, mas como não sabemos em que consiste uma divisão, continuamos mal informadas. De fonte alemã, fala-se à boca pequena do começo do fim. Uma vez mais, dou pirueta como uma doida, apesar da dor sempre lancinante que sinto no pé. Houben [o contramestre-chefe] me vê, chama um de seus ajudantes, os dois me observam enquanto imito uma bailarina. Henriette manda, aos gritos, que eu sossegue. Tarde demais! Eles me viram. Tanto pior!” pp. 160-161


...




Krefeld-Anrath (25 de agosto … 19 de outubro de 1943)


Na 'Rheika', trabalhávamos numa fábrica estatizada. Para nós, detentas políticas, a situação era até certo ponto compreensível. Havíamos causado problemas à Alemanha hitlerista, e a Alemanha hitlerista se vingara de nós fazendo com que trabalhássemos para ela até a morte nos levar. Agora, porém, tudo mudou. A Alemanha hitlerista nos alugou (bem barato, sem dúvida) a um feitor de escravos que ficará rico com o o nosso suor. Somos sessenta, francesas, belgas e holandesas, propriedade de Herr Joseph Scheuring, que, embora alemão, membro do Partido e, obrigatoriamente, ariano puro, tem a aparência de um sírio que enriqueceu graças ao tráfico de escravas brancas. Tem a pele morena, cabelos negros e crespos, usa chapéu-panamá, jaquetão bege claro, sapatos brancos arrematados por biqueiras amarelas, anelão de ouro ornado de lápis-lazúli e, naturalmente, gravata vermelha. É bonito demais para ser de verdade. É uma ousadia descrevê-lo, por medo de que nos rotulem de exageradas. Ninguém sabe de que buraco saiu este crápula extraordinário, intimamente ligado, ao que parece, ao diretor da prisão de Anrath. Diariamente, depois das cinco da tarde, já está praticamente bêbado. Sua fábrica foi em boa parte destruída pelo último bombardeio. Cabe a nós derrubar os muros claudicantes e limpar os tijolos para torná-los passíveis de serem utilizados novamente. Cabe a nós, às sessenta mulheres, a honra de construir uma nova fábrica para que Herr Scheuring enriqueça. Seu quadro de funcionários abrange, além de nós, Adolphe e Georges, dois prisioneiros de guerra francesas, e dois condenados alemães a trabalhos forçados. Naturalmente os homens estão proibidos de nos ajudar, e o trabalho mais duro fica a nosso cargo. Carregamos as vigas de ferro, misturamos o cimento e a argamassa, descarregamos os caminhões de material de construção, bem como as mercadorias. Os homens levantam os andaimes e as paredes. Algumas mulheres sentem vertigem quando têm que subir no andaime, com o pé nu dentro dos tamancos. […]

A oficina não existe mais, nós a estamos reconstruindo agora. Apesar de tudo, o feitor de escravos me chama várias vezes ao dia para executar trabalhos pesados. O destino das mulheres que não se ocupam da costura dos sacos nem da armazenagem é absolutamente inacreditável. Fazem terraplanagem, cavam as valas onde entrarão os cabos de alta tensão e os encaixam ali, fabricam o cimento e a argamassa e transportam tudo isso para o canteiro de obras e dele para os andaimes. […] O dia inteiro, Scheuring dirige os trabalhos. Além da nossa guardiã, somos vigiados pelos dois filhos de Scheuring, que têm, respectivamente, 11 e 12 anos. Eles executam à perfeição sua tarefa de espiõezinhos nazistas e não tiram os olhos de nós. A menina é pior que o menino. Por qualquer coisinha, o patrão nos manda para o confinamento disciplinar, pois, para o cúmulo da felicidade, estamos alojadas novamente em Anrath. A prisão não mudou desde que lá cheguei em abril de 1942. no entanto, há uma novidade: um aviso impresso em belíssima caligrafia, acima da porta de entrada. O texto integral em francês é o seguinte:

'No caso de bombardeio aéreo, todos devem se manter absolutamente calmos. Quem fizer barulho ou tentativa de fuga (sic) será fuzilado.

Assinado: Dr. Cobrick, diretor da prisão masculina e da Maison de Force feminina.'

O diretor da nossa prisão se gaba de conhecer muito bem a língua francesa. Este aviso foi postado na entrada em seguida a um terrível surto de pânico na prisão. Todas as infelizes prisioneiras estavam trancadas à chave lá dentro. Durante um ataque aéreo intensíssimo, uma bomba caiu bem pertinho e, com o incêndio se alastrando pelos prédios vizinhos à prisão, as mulheres desesperadas tentaram arrombar as portas das próprias celas, dando origem a este pitoresco apelo à calma.” pp. 183-185



fonte: HUMBERT, Agnés. Resistência. (Résistance) trad. Regina Lyra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.



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